Condições para fim da guerra da Ucrânia começam a aparecer, mas incertezas continuam
Debaixo de bombas, os ucranianos acompanham atentos o balé dos poderosos que definirão seu destino
Depois de mais de três anos de um arrastado conflito que havia perdido os holofotes para a guerra entre Israel e a Faixa de Gaza e para as provocações tarifárias de Donald Trump, as peças do tabuleiro do campo de batalha da Ucrânia se moveram em velocidade frenética nos últimos dias — como nunca antes desde que a Rússia invadiu o vizinho, achando que a vitória seria fácil. A sequência de acontecimentos que pôs sobre o palco global os líderes envolvidos, de forma direta ou indireta, começou com um encontro entre Trump e o russo Vladimir Putin no frio cenário do Alasca (mesmo em pleno verão), no último dia 15. O convescote acabou se tornando um show no qual cada presidente (ambos altivos e arrogantes) conseguiu se sair bem na foto.
Para Putin, foi a oportunidade de deixar por um dia a condição de pária e o isolamento em Moscou para desfiar piadas e dar mostras de força, com direito a tapete vermelho e carona na limusine do americano, batizada de “a besta”. Trump, de seu lado, fez o que pôde para cimentar no imaginário global a suposta astúcia para tecer acordos, papel que continuou a desempenhar na segunda-feira 18, quando foi o anfitrião de uma reunião na Casa Branca que juntou sete líderes europeus. Eles interromperam as férias para demonstrar apoio incondicional a Volodymyr Zelensky.
Os poderosos participantes da agenda da Casa Branca, cujo objetivo era avançar nas conversas sobre o cessar-fogo, pareciam preparados para tirar proveito do momento, mesmo sem grandes anúncios. De todos, o presidente ucraniano foi quem deixou Washington mais fragilizado. É verdade que o tratamento dispensado a ele em nada se aproximou do episódio de fevereiro deste ano, quando foi publicamente humilhado pelo inquilino da Casa Branca em um vergonhoso capítulo da diplomacia moderna que terminou em bate-boca. Sempre em trajes militares, dessa vez apareceu de calça social e paletó pretos, colhendo um “não acredito” de Trump, espantado com a estica. Outrora acusado de “ingratidão”, o ucraniano pronunciou doze vezes a palavra “obrigado”.
Já os europeus se posicionaram na arena dentro do figurino esperado — o francês Emmanuel Macron, o alemão Friedrich Merz, o britânico Keir Starmer e os outros sabiam que o protocolo de Trump exigia discrição e a compreensão de que o protagonismo era dele. “A Ucrânia e a Europa são coadjuvantes. Quem dá o ritmo das conversas é Putin e Trump”, diz o cientista político Brian Taylor, da Universidade de Syracuse, em Nova York.
Do lado russo, ao desembarcar no Alasca, Putin sabia que precisaria fazer acenos mais concretos na direção de um desfecho do conflito, e o fez de maneira vaga o suficiente para manter a conversa viva, mas longe de conclusiva, para ganhar tempo e engolir ainda no verão mais alguns nacos do território da Ucrânia (do qual já domina 20%), ficando livre das sanções que Trump ameaçava lhe impor e por ora engavetou. Do ponto de vista de Washington, o adiamento das sanções era conveniente, assim como emitir a mensagem de que tem as rédeas da negociação.
A aparente calmaria entre os poderosos, a imagem pública de bom senso e diplomacia, mal dissimula o que virá pela frente, ainda incerto, sem resultados palpáveis. Há muitas perguntas no ar, e sabe-se lá quando virá a trégua. Mas brotou uma certeza: como esperado, a Ucrânia perdeu o duelo com a Rússia e sairá diminuída. Resta, agora, saber quando e em que termos a derrocada será sacramentada. “Não há dúvida de que os ucranianos abrirão mão de certas áreas. A questão é definir o tamanho da perda”, afirma Anatol Lieven, do Instituto Quincy, nos Estados Unidos.
As condições postas hoje à mesa são para lá de desfavoráveis à Ucrânia. Durante todo o longo tempo do conflito, Zelensky repetiu que nunca cederia territórios, mas já admitiu a possibilidade, mesmo reticente. Falta, no entanto, combinar os detalhes com o russo. Pelo que deixaram vazar, a trégua passaria pela Ucrânia ceder as partes que o país ainda controla das províncias de Luhansk e Donetsk, que compõem a região do Donbass, farta em indústrias e minérios. Em troca, Putin devolveria pequenos bolsões que seu país ocupa ao norte da Ucrânia e não mais avançaria sobre o solo inimigo, mantendo a Crimeia, que tomou em 2014, e uma porção considerável no sul (veja o mapa). Em suma, o que os russos querem é, mesmo sem ter conseguido conquistar todo o Donbass, encerrar a discórdia com 100% da área que, além de estrategicamente fincada na fronteira entre os dois países, concentra população russa e abriga há uma década forças separatistas pró-Kremlin. “É uma perspectiva humilhante para um país entregar a sua terra soberana como uma irônica recompensa ao agressor”, diz Igor Lukes, professor de relações internacionais da Universidade de Boston.
De modo a ter medida da dimensão das exigências de Putin para pôr fim à guerra, a inteligência britânica fez um cálculo de quanto tempo levaria para os russos se apropriarem de todo o Donbass. Resposta: mais de quatro anos, período em que estimados 2 milhões de baixas seriam registrados de ambos os lados do ringue. Mas é tanta a fadiga causada pelo conflito, com efeitos desastrosos à economia e à infraestrutura, que cerca de 40% da população na Ucrânia considera hoje razoável a cessão de territórios, algo impensável no início. A contrapartida para Zelensky seria a garantia de segurança do país, para evitar novos ataques. Nada, contudo, assegura a tranquilidade futura. De acordo com o Instituto para o Estudo das Guerras (ISW), o naco do Donbass, uma vez em mãos russas, pode vir a servir de plataforma de lançamentos.
Conceder à Ucrânia garantias de segurança, insista-se, é requisito crucial para os europeus, que têm o eterno (e justificado) temor de que o afã expansionista russo possa um dia se estender por suas fronteiras, que estão logo ali. Nada ficou muito claro neste escaninho das negociações, à exceção de um ponto em que Putin finca o pé: a Ucrânia não entrará para o rol de países da Otan. A partir daí, as conversas giram em torno de uma “garantia semelhante” àquela dada ao grupo, descrita no artigo 5 da carta da organização: ela estabelece que todos os seus membros, incluindo aí Estados Unidos e os europeus, têm obrigação de defender qualquer um de seus integrantes no caso de um ataque. O Kremlin teria emitido um sinal verde ao plano, mas, em princípio, veta o posicionamento de soldados europeus em solo ucraniano — assunto que levou a turma de líderes que estiveram na Casa Branca a se reunir novamente na terça-feira 19, por videoconferência. Em suas idas e vindas sobre o enroscado tema, Trump vagamente sinalizou com algum apoio aéreo, deixando “uma primeira linha de defesa” a cargo da Europa.
Enquanto o próximo passo nas tratativas segue em aberto, com uma aventada possibilidade de encontro entre Putin e Zelensky, o tempo conspira a favor das duas principais peças do complexo xadrez: o russo e Trump. Para o americano, manter a bola quicando, como diz o chavão, sem se desentender nem com um lado nem com o outro, é o desejável agora. Baixar pesadas sanções à indústria energética russa, como havia prometido, poderia causar uma reação em cadeia no mercado global de petróleo, com aumento da inflação nos Estados Unidos. Além disso, deixar a porta aberta para a Rússia é uma aposta na direção de selar tratados como o de controle de armas nucleares e a exploração de recursos no Ártico, e negócios em setores diversos. Já Putin, que faz o que pode para desacelerar o ritmo das conversas, tenta acumular ganhos: desde o início das atuais costuras, ordenou alguns dos ataques mais mortais de toda a invasão. Em uma ofensiva-relâmpago, suas tropas avançaram 16 quilômetros em Donetsk. “Se não houver um acordo no curto prazo, os termos russos em um futuro próximo podem ser ainda piores”, diz Mark Harrison, professor de história econômica da Universidade de Warwick.
Em um artigo de próprio punho que publicou em 2021, Putin se referia “à causa raiz da guerra”, tratando a independência da Ucrânia, declarada em 1991, e sua aproximação com o Ocidente como uma aberração, já que seriam “um povo só”. “Ele deseja devolver à Rússia a posição de superpotência que detinha nos tempos de União Soviética e defende que suas ex-repúblicas são suas por direito”, diz a socióloga Liah Greenfeld. No caso da Ucrânia, o projeto passa por enquadrar o país na órbita russa, plantando ali mais uma vez um governo fantoche, tal qual em Belarus e na Geórgia. Não à toa, o chanceler Sergey Lavrov desfilou no Alasca uma camiseta estampada com a saudosista sigla em russo CCCP, da União Soviética.
Provocações à parte, o plano para depois da trégua inclui, claro, tirar o ex-ator Zelensky do palco. Pesquisas recentes já indicam entraves à reeleição. Mesmo impondo tantos obstáculos, acredita-se que a Rússia, em horizonte não tão dilatado assim, vá querer pôr um ponto-final no impasse. Além da morte de 250 000 soldados (na Ucrânia foram cerca de 100 000), a nação governada há mais de duas décadas por Putin caminha para a recessão, e um alívio nas sanções vigentes seria um bem-vindo respiro. Debaixo de bombas, os ucranianos acompanham atentos o balé dos poderosos que definirão seu destino.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958


