Conflito entre o Hamas e israelenses traz pior onda de violência em anos
Uma disputa sobre propriedades em Jerusalém desencadeia ataques e alimenta a ameaça de outra revolta da população dos territórios ocupados
As peças estavam montadas para ser uma semana-problema em Jerusalém. Aproximava-se o fim do Ramadã, celebração religiosa dos muçulmanos que costuma lotar as mesquitas. A Suprema Corte de Israel se preparava para julgar um explosivo cabo de guerra entre palestinos e integrantes de assentamentos judeus relativo à posse de uma área disputada. E a ultradireita israelense cerrava fileiras para, em seu ato de provocação anual, marchar pela parte árabe da cidade comemorando o Dia de Jerusalém, a data em que a porção oriental foi ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Engrossado à base de tensões, provocações e reações agressivas, o caldo social do Oriente Médio, sempre em ponto de ebulição, em questão de dois dias derramou-se em tiros, foguetes e mortes, desencadeando uma escalada de violência e protestos como não se via fazia anos.
As escaramuças entre militantes palestinos, nacionalistas judeus e a polícia vinham acontecendo havia semanas, motivadas pelo iminente julgamento do pedido de despejo de seis famílias palestinas do bairro de Sheikh Jarrah, na porção leste de Jerusalém. As casas ficam em terrenos enroscados em uma disputa que vem desde 1876, quando Jerusalém fazia parte do Império Otomano. Nela vivem palestinos há pelo menos sete décadas, mas uma associação de colonos alega ter o título de propriedade e se empenha na Justiça em remover os atuais moradores — já conseguiu tirar mais de 200, no que líderes palestinos qualificam de “limpeza étnica” — e instalar no local um assentamento judeu.
Os ânimos estavam, portanto, acirrados quando os fiéis, na segunda-feira 10, lotavam a mesquita de Al Aqsa, terceiro local mais sagrado do Islã — situado na elevação onde estão as ruínas do Segundo Templo dos judeus e o Muro das Lamentações. A polícia diz que da mesquita partiram as primeiras pedras. Os palestinos alegam que os policiais é que invadiram a praça onde rezavam, lançando balas de borracha e bombas de efeito moral e atingindo as paredes do templo sagrado e quem estivesse por perto. Foram 350 feridos, duas dezenas deles policiais.
Tentando acalmar os ânimos, a prefeitura desviou a rota da marcha para longe dos bairros árabes e a Suprema Corte adiou o julgamento por trinta dias. Não adiantou. De surpresa, o Hamas, entidade que controla a Faixa de Gaza e está na lista internacional de grupos terroristas, reagiu como não fazia desde 2014 — disparou foguetes contra Jerusalém. Em resposta, Israel bombardeou Gaza e derrubou prédios inteiros. Seguiram-se nova bateria de foguetes, dessa vez contra Tel Aviv e arredores, e outro bombardeio. Os ataques dos dois lados prosseguiram noite adentro. Até a quinta-feira 13, eram 56 feridos e sete mortos (uma criança) do lado israelense e 83 mortos (dezessete crianças) e centenas de feridos do lado palestino.
A escalada de violência teve um efeito imprevisto: pela primeira vez em uma década, palestinos na Cisjordânia ocupada, abrigados sob o guarda-chuva da Autoridade Palestina — uma organização muito mais moderada do que o Hamas —, foram às ruas em massa protestar contra a ameaça de despejos em Jerusalém Oriental, que consideram a futura capital de um Estado próprio. Na vizinha Jordânia, milhares de refugiados marcharam aos gritos de “Morreremos por Sheikh Jarrah”. “É uma situação volátil, que pode escalar rapidamente”, diz Shibley Telhami, do Centro de Política para o Oriente Médio do Brookings Institution. A mais recente revolta contra a ocupação, em 2000, matou 2 200 pessoas e deixou 10 000 feridos.
O confronto de agora tem raízes na desesperança dos palestinos, que viram sua causa estancar depois que o governo Donald Trump alinhavou a aproximação de Israel com as monarquias árabes do Golfo Pérsico, sua maior fonte de apoio financeiro. Os Estados Unidos, a Europa e a ONU condenaram a violência, mas suas vozes, até agora, não influenciaram os rumos do conflito. As rédeas estão nas mãos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e do terror do Hamas, e ambos têm razões para explorar a situação. Netanyahu, interino há dois anos, não conseguiu formar um novo governo. Agora, com os ataques, se fortaleceu. O Hamas, por sua vez, ao mobilizar os palestinos da Cisjordânia, sobrepõe-se à Autoridade Palestina, com quem trava uma surda luta por poder. Como acontece há décadas no Oriente Médio, o cálculo político segue de perto a mobilização popular.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738