Coronavírus na Itália: adianta fechar um país?
Diante da pandemia, o país isolou-se do resto do mundo. A medida faz parte do arsenal de combate ao surto, mas a melhor arma ainda é a prevenção individual
Faltava pouco para o meio-dia quando policiais chegaram à Praça São Pedro, em Roma, ergueram grades e postaram-se para impedir o ingresso de fiéis e turistas no espaço de 8 000 metros quadrados que dá acesso à basílica principal da fé católica, aos museus do Vaticano e à bênção do papa Francisco na hora do Angelus. O cerco faz parte de um conjunto de medidas de emergência, algumas inéditas e todas tingidas de desespero, que o primeiro-ministro Giuseppe Conte tomou para tentar conter o avanço galopante no país do novo coronavírus, o microrganismo originário da China, responsável pelo que a Organização Mundial da Saúde teve de classificar como pandemia — o grau máximo de amplitude de uma epidemia.
A Itália está isolada — salvo raras exceções, ninguém entra e ninguém sai do país sem autorização. Até 3 de abril, quando se prevê a suspensão do isolamento, permanecerão de portas fechadas os bares, restaurantes, museus, teatros, cinemas e o comércio em geral, com exceção de mercados, farmácias e correios. As escolas não estão funcionando. Competições esportivas foram suspensas, bem como casamentos, funerais e missas. Indústrias e serviços que não deixarem seus funcionários trabalhar em casa, sendo isso possível, serão multados. Recomenda-se fortemente a abstenção de beijos, abraços e almoços em família. As bênçãos papais estão sendo dadas por vídeo. A Fontana de Trevi romana, a Ponte Vecchio, em Florença, a Praça de São Marco, em Veneza, o Quadrilátero da Moda, concentração de grifes de luxo em Milão, locais eternamente coalhados de visitantes, estão entregues aos pombos.
Essas medidas, as mais severas já tomadas por um país ocidental desde a II Guerra, foram impulsionadas pela rapidez meteórica com que se espalhou o vírus, inicialmente contido na Lombardia, no Vêneto e em Emilia-Romagna, regiões ao norte do país — e seu motor econômico, responsável por 56% do PIB. Nos vinte dias que se passaram entre o primeiro caso confirmado, em 21 de fevereiro, e a quinta-feira 11, foram contabilizadas 12 462 pessoas contaminadas e 827 mortes. A taxa de mortalidade alcança 6,6%, muito acima da média mundial, de 3,4%, por uma questão demográfica: a Covid-19, nome dado à doença causada pelo vírus, é letal principalmente entre os mais velhos (veja o gráfico na pág. 61), e a população idosa da Itália é a segunda maior do mundo, atrás apenas da do Japão — 23% dos italianos têm mais de 65 anos. No exato momento da péssima notícia de que a curva de contaminação disparava na Itália, a China, onde tudo começou em dezembro e que registrava mais de 80 000 infectados e mais de 3 100 mortos, e a Coreia do Sul, a primeira fronteira cruzada pelo vírus no mês seguinte, divulgavam a única boa notícia desde que teve início a pandemia: uma desaceleração na quantidade de infecções, a ponto de o número de casos italianos ocupar o desafortunado segundo lugar, antes pertencente aos coreanos.
Passada a demora inicial, isolar regiões foi a primeira medida tomada pela China para conter a disseminação do novo coronavírus, repetindo o que havia feito com sucesso durante a epidemia da síndrome respiratória aguda grave (Sars), em 2002 e 2003. Wuhan, o epicentro da pandemia, e outras quinze cidades foram inteiramente fechadas a entradas e saídas. Lançando mão da extraordinária força de trabalho chinesa e da autoridade de um governo que não admite contestação, ergueram-se hospitais a toque de caixa, estádios se converteram em centros de tratamento e o monitoramento dos chineses por meio de drones, softwares de reconhecimento facial e controle das redes sociais — uma especialidade do governo de Pequim, em geral usada para fins deletérios — se intensificou. Aparentemente, deu resultado: na terça-feira 10, o presidente Xi Jinping, de máscara azul, arriscou uma visita a Wuhan, onde elogiou o “esforço árduo” que permitiu “um promissor avanço na contenção da epidemia”.
Na Itália, ao contrário, a primeira reação, tanto das autoridades quanto do governo, foi desorganizada e amadora. O plano de isolamento do primeiro foco, na Lombardia e no Vêneto, vazou um pouco antes do anúncio oficial — e o pânico tomou conta da população. Multidões lotaram estações de trem, e ônibus e carros congestionaram as estradas, facilitando a propagação do vírus. O “paciente 1”, um homem de 38 anos identificado em Codogno, no sul da Lombardia, passou 36 horas em um hospital com sintomas de gripe, teve alta, piorou, voltou a ser internado e só então contou que estivera com uma pessoa vinda da China e foi testado. Ele já saiu da UTI. O “paciente zero”, o que veio da China, permanece sem identificação. Ao contrário do que ocorreu na França e na Alemanha, que montaram planos de contingência, ampliaram a capacidade dos hospitais e estabeleceram protocolos rigorosos, na Itália o serviço de saúde pública rapidamente chegou à capacidade máxima e a aplicação indiscriminada dos testes inflou artificialmente o número de vítimas, em um primeiro momento, insuflando o pânico. “A Itália foi o primeiro país europeu a ter de enfrentar o novo coronavírus em massa e, naturalmente, cometeu erros”, diz a italiana Ilaria Capua, especialista em virologia da Universidade da Flórida.
A mutação do coronavírus está presente em 117 países, entre os quais o Brasil, que tinha mais de setenta casos confirmados até a quinta-feira 12, inclusive o do chefe da Secretaria Especial de Comunicação (Secom), Fabio Wajngarten, que acompanhou a visita do presidente Jair Bolsonaro a Donald Trump no dia 7. A Embaixada dos Estados Unidos em Brasília pediu informações. Fora da China, o total de infectados supera 44 000, com quase 1 500 mortes. Nos Estados Unidos, onde os casos confirmados passaram de 1 000, Trump anunciou, com habitual estardalhaço, a suspensão por trinta dias de autorização para pouso de aviões vindos da Europa (com exceção da Grã-Bretanha); as universidades Harvard, Stanford e Princeton, entre outras, estão dando aulas on-line; a NBA suspendeu o torneio de basquete; e um subúrbio de Nova York, estado onde foi decretada emergência, encontra-se isolado. O Departamento de Saúde desaconselha as viagens em cruzeiros, e os americanos acompanharam pelos noticiários o drama de 3 500 passageiros de um navio, entre eles 21 comprovadamente infectados, que teve de aguardar alguns dias a permissão para aportar na Califórnia. Na segunda-feira 9, todos desembarcaram em Oakland, passaram por triagem em tendas armadas no porto e seguiram para uma quarentena de duas semanas em locais variados. O ator Tom Hanks e a mulher, Rita Wilson, ambos de 63 anos, testaram positivo para o vírus.
Não existem meios de conter completamente a disseminação de um vírus para o qual não há vacina, mas nem por isso se pode descuidar da prevenção (o que não impediu que os torcedores do PSG, proibidos de entrar no estádio em Paris, se aglomerassem do lado de fora para acompanhar e celebrar a vitória de 2 a 0 sobre o Borussia Dortmund alemão, que pôs o time nas quartas de final da Champions League). Os números vêm demonstrando que, quanto mais praticadas as medidas preventivas, mais “achatada” é a curva da contaminação — que de outra forma atinge picos rapidamente. A chanceler alemã Angela Merkel alertou, sem meias palavras, para o fato de que 60% a 70% dos alemães devem ser infectados antes que se obtenha uma vacina, mas insistiu: os cuidados para evitar a contaminação continuam (embora ela não ponha fé na eficácia de fechar fronteiras). Segundo as estatísticas, 80% das pessoas que desenvolvem a Covid-19 se curam e apenas 3% a 5% requerem tratamento em UTI.
O Brasil não registrava nenhuma morte até a quinta-feira 12. O serviço descentralizado de saúde daqui é considerado adequado para tratar de um surto. Escolas em São Paulo e em Brasília com alunos que tiveram contato com possíveis infectados suspenderam as aulas. No Rio, ainda é pequeno o número de turistas circulando com máscaras. “A gravidade da doença no país vai depender da velocidade e da intensidade do surto, mas o risco é, em princípio, menor, por termos um fluxo de turismo menos intenso do que Europa e Estados Unidos e pelas temperaturas elevadas, que dificultam a propagação de vírus”, diz o epidemiologista Eliseu Alves Waldman, professor de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP). Resta esperar, seguindo a cartilha já decorada: lavar as mãos com frequência, desinfetar superfícies muito manipuladas e adiar os planos de viagem. O pânico só atrapalha.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678