Coronavírus: o medo de uma epidemia
Mutação perigosa do vírus da pneumonia, que se alastra justamente na época em que os chineses mais viajam, já chega a outros países — e começa a assustar
Era para ser uma celebração feliz do Ano-Novo lunar, quando as famílias tradicionalmente recebem seus parentes dispersos pela China e por outros países. Mas não foi o que aconteceu nas festas do início do ano do rato em Wuhan, a capital da Província de Hubei, no centro do país, que tem como ponto turístico o deslumbrante cenário da Hidrelétrica das Três Gargantas, a maior do mundo. Supõe-se que, do contato de pessoas com cobras e morcegos vivos vendidos em um mercado local, uma mutação devastadora do coronavírus, causadora da pneumonia, tenha começado a se propagar no fim de dezembro. Como sempre ocorre nessas situações, a multiplicação de vítimas do 2019-nCoV, como foi batizado, acelerou-se rapidamente. Até a quinta 23, 631 pessoas em Wuhan e em outras partes da China tinham sido infectadas e dezoito haviam morrido. Outros casos foram identificados em oito países, entre os quais Japão, Coreia do Sul e Tailândia. Na terça-feira 21, o coronavírus atravessou o Oceano Pacífico: uma vítima vinda de Wuhan foi confirmada no Estado de Washington, na Costa Oeste dos Estados Unidos. No Brasil, houve cinco alarmes falsos em Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e no Distrito Federal.
Ágil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu aos governos que ativassem o monitoramento e os preparativos para atender os pacientes. A checagem da temperatura de passageiros vindos da China foi adotada nos aeroportos de países vizinhos, como a Malásia e a Índia. Em paralelo, diversas medidas foram tomadas. O mercado atacadista de frutos do mar e animais vivos onde teria se originado a mutação do coronavírus foi desinfetado e fechado. Os moradores de Wuhan, centro econômico, financeiro e cultural, evitam sair e trabalham em casa. Quem conseguiu correu com a família para o aeroporto — justamente uma das formas mais rápidas de o coronavírus se espalhar. Casos foram reportados em Xangai, Shenzhen, Hong Kong e Pequim. Diante do agravamento da propagação desse vírus, o governo finalmente pôs Wuhan e outras quatro cidades em quarentena: nenhum ônibus, trem ou avião pode agora entrar ou sair das cidades, que, juntas, somam mais de 20 milhões de habitantes.
O Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos confirmou que um homem, não identificado, apresentou os sintomas depois de viajar para Wuhan e está isolado no Centro Médico Regional de Providence. O CDC determinou a triagem de passageiros vindos de Wuhan nos aeroportos de Atlanta e Chicago, dois dos mais movimentados do mundo; Los Angeles, São Francisco e Nova York monitoram quem vem de lá desde o dia 17. O 2019-nCoV, tal qual os vírus mais comuns, como o da gripe, é transmitido pelos fluidos humanos — saliva e secreções. Medidas simples, como lavar as mãos com frequência, contribuem para evitar o contágio. Os primeiros sintomas são febre, coriza e dor de garganta.
O coronavírus foi identificado na década de 60 e só provocava resfriado. Mas em 2002, na mesma China, descobriu-se uma mutação dele que causava a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês). Resultado: mais de 8 000 pessoas infectadas e 800 mortes no mundo até meados de 2003. Nove anos depois, casos de contaminação por outro tipo de coronavírus, responsável pela infecção nos pulmões, foram reportados na Jordânia e na Arábia Saudita. De lá, a doença, chamada de síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), se disseminou, atingiu 2 220 pessoas e matou 790 até 2018. Entre um e outro episódio, o H1N1 partiu também da China em 2009 e espalhou a chamada gripe suína pelo planeta. No Brasil, 2 060 dos 50 482 infectados morreram. Segundo o médico pneumologista Elie Fiss, pesquisador sênior do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, nas últimas duas décadas o coronavírus vem causando inflamação acentuada nos alvéolos, nos brônquios e no interstício pulmonar. “Ele ataca de forma tão virulenta quanto um boxeador que entra no ringue dando pancadas no adversário”, afirma.
No caso do H1N1, o desenvolvimento de uma vacina conteve o avanço da doença. Já a Sars e a Mers continuam latentes — sua propagação vem sendo impedida por campanhas de higiene e monitoramento intenso de viajantes de áreas críticas. O fato de a Sars, o H1N1 e, agora, o 2019-nCoV terem surgido na China não surpreende os médicos sanitaristas. Mesmo em áreas urbanas, a sociedade chinesa mantém a tradição de criar animais para consumo em condições precárias e isentas de vigilância sanitária. A constante ameaça de pandemias levou o governo chinês a ordenar o extermínio de 40% do rebanho suíno — algo como 160 milhões de cabeças — entre 2018 e o fim do ano passado, para debelar surtos da chamada febre suína africana. Mas, preocupado com a repercussão, o governo de Xi Jinping só começou a dar atenção ao 2019-nCoV depois que os casos da doença saíram na imprensa de Hong Kong. Segundo Dali Yang, professor da Universidade de Chicago, as autoridades de Wuhan subestimaram o surto para não afetar duas conferências políticas locais em janeiro.
Pequim censurou os meios de comunicação e prendeu oito pessoas que tocaram no assunto em redes sociais. Só na segunda-feira 20 uma equipe do Centro de Prevenção e Controle de Doenças chegou a Wuhan. O cientista Zhong Nanshan, em raro instante de franqueza, confirmou que o coronavírus é transmitido entre humanos e que apenas um paciente contaminara catorze funcionários do hospital onde estava internado. O ano do rato começou com maus presságios.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671