À medida que mais países avançam na vacinação contra a Covid-19, governos, empresas e cidadãos se animam a praticar um exercício há muito deixado de lado: planejar o futuro. É verdade que o caminho para a retomada da vida como ela era segue complexo e necessitado de muitos cuidados, visto que o vírus continua em acelerada circulação em boa parte do mundo — no Brasil, infelizmente, ainda bate recordes de mortalidade. Mas a vacina tem, sim, condições de fazer o jogo virar. Com esse pote de ouro no fim do arco-íris a atiçar corações e mentes, ganha força no planeta a criação de um “passaporte da imunidade” que permita aos vacinados viajar, ir ao cinema, a shows, torcer por seu time no estádio, casar-se com um festão, enfim, sair do casulo. A maioria está em fase de testes e com variações de modelo — vai de aplicativo com QR code à velha e boa carteirinha de papel. Mas, pela velocidade com que a ideia se dissemina, o passaporte — que, além da vacina, pode informar se a pessoa testou positivo nos últimos quatro meses (sinônimo de uma possível imunização) ou negativo nas 72 horas anteriores —, quando chegar, será para ficar.
A sonhada libertação dos vacinados deve produzir efeitos ainda mais amplos do que a felicidade individual. Ela tem potencial de reativar setores devastados da economia, como o varejo de rua, a indústria do entretenimento e, acima de tudo, o turismo mundial, penalizado pela paralisação imposta pela pandemia com um recuo de 74% no ano passado. Com mais da metade de seus 9 milhões de habitantes já imunizada, Israel saiu primeiro, lançando em fevereiro o Green Pass (passe verde), com o qual se pode ir a espetáculos, frequentar academia, passar horas no cabeleireiro e circular por pontos de aglomeração controlada. “Foi vacinado? Pegue o Green Pass e volte à vida normal”, tuitou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. No caso das viagens internacionais, por ora restritas, os israelenses pelo menos poderão passar em casa, em vez de em hotéis designados pelo governo, a quarentena obrigatória na volta ao país, desde que não desgrudem de um bracelete eletrônico, para ser usado no pulso ou no tornozelo, que rastreia sua localização. Enfim, uma tornozeleira do bem. “É muito bom ver a volta à vida. Mas precisamos fazer isso de forma gradual, seguindo de perto as estatísticas”, ressalta a infectologista Galia Rahav, do Sheba Medical Center, em Tel-Aviv.
A experiência israelense vem sendo acompanhada atentamente por outros países que planejam seus próprios passaportes da vacina — um avanço excepcional, sem dúvida, mas que ainda tropeça em obstáculos como as mutações que podem baixar a proteção da vacina e o desconhecimento, por falta de tempo hábil, da extensão de sua validade. No Reino Unido, que pretende ter toda a população adulta imunizada até o fim de julho, o sistema de saúde começa a testar ainda neste mês a emissão aos vacinados de um passe eletrônico para locais com grande público. Será o segundo passo do aguardadíssimo relaxamento de regras no país, que começou à meia-noite do segunda-feira 12, com a reabertura das áreas ao ar livre, de pubs e restaurantes.
Em um gesto destinado a aplacar preocupações com excessos, o primeiro-ministro Boris Johnson ressaltou que no primeiro teste do novo passe, na semifinal da Copa da Inglaterra, neste domingo 18, Wembley receberá 4 000 torcedores, mesmo tendo capacidade para 90 000 (o controle de aglomerações, aliás, segue válido com ou sem passaporte). Para agradar à turma que rejeita controles, Johnson avisou que serviços essenciais e transportes públicos não vão exigir o documento. Na quarta-feira 14, foi a vez de os países da União Europeia lançarem um texto preliminar que esboça como funcionará seu Atestado Verde Digital. O plano é que ele esteja na ativa até junho, a tempo de dar impulso à profícua temporada de verão, permitindo a imunizados ou portadores de teste negativo recente viajar pelos 27 países do bloco sem enfrentar quarentenas. A proposta apresentada pela Comissão Europeia prevê que conste do documento um QR code e assinatura digital do portador, para evitar falsificações — preocupação relevante na área da saúde pública. A boa notícia para não europeus é que a UE estuda aceitar atestados emitidos por outros países para a livre circulação por lá.
Em paralelo às iniciativas dos governos, as próprias companhias aéreas, interessadíssimas em inflar seu público ainda raquítico com passageiros vacinados, estão se movimentando para oferecer, elas mesmas, aplicativos de certificação de vacinação que agilizem os embarques. Vinte empresas já manifestaram interesse no Travel Pass, atestado eletrônico fornecido pela Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata), enquanto outras adotam o concorrente CommonPass, oferecido por uma ONG suíça — ambos, neste começo, usados para comprovar testagem negativa, mas capacitados a incluir vacinação. O primeiro fez sua estreia em um voo da Singapore Airlines para Londres, em março, e deve ser estendido a mais rotas a partir do mês que vem. O segundo está em uso pela JetLine nas viagens para Aruba e se encontra em avaliação nos voos da Lufthansa para os Estados Unidos e embarques no aeroporto de Tóquio.
Como o mundo jamais havia passado por uma situação como a de agora, o impacto de inovações como o passaporte da vacina vai sendo tateado à medida que elas são postas em prática. Na Dinamarca, primeira nação do continente europeu a adotar um sistema do gênero, o governo acaba de implantar o abrangente Coronapas, certificado eletrônico exigido até para entrar em lojas. “O risco de discriminação vai crescer e o tema certamente será muito discutido nos próximos meses”, pondera Tineke Strik, deputada holandesa no Parlamento Europeu. Nos Estados Unidos, governadores do Mississippi, Flórida e Texas, do Partido Republicano, avisaram que vão barrar toda e qualquer resolução de tal natureza, por julgar que elas cerceiam as liberdades individuais. Ciente do vespeiro, o presidente Joe Biden afastou a possibilidade de envolvimento da Casa Branca, deixando a questão sob responsabilidade de governos estaduais e municipais e do setor privado. O projeto mais avançado no país é o Excelsior Pass do Estado de Nova York, que, desde março, libera o acesso de pessoas vacinadas ou com teste negativo a estádios, arenas, atividades religiosas e festas de arromba — sempre com restrições à capacidade do espaço.
O passaporte da vacina traz embutida uma série de questões éticas, que vão sendo postas à mesa. Como a imunização está caminhando de forma desigual pelas nações (veja o ranking), o passe dos vacinados criaria, supostamente, castas de cidadãos mais e menos privilegiados — abarcando aí os habitantes de países pobres (ou mal governados) e os grupos mais vulneráveis, mesmo naqueles com ampla vacinação. Nos Estados Unidos, negros e latinos, os mais afetados pela crise, têm tido maior dificuldade de se vacinar, por viverem em áreas onde os serviços de saúde são precários. Outro fator de preocupação é a quantidade de dados individuais que podem deixar de ser sigilosos na confecção dos documentos eletrônicos. A sempre citada restrição de liberdades individuais, por seu lado, conta com especial simpatia entre os negacionistas e suas destrambelhadas teorias de que a vacina faz mal e medicamentos mágicos são capazes de vencer o vírus. Os aspectos discutíveis, porém, não apagam o que o passaporte traz de bom — inclusive a capacidade de incentivar renitentes a pôr a teimosia de lado e tomar a tão necessária vacina. “Não há dúvida de que são uma forma eficiente de aumentar a adesão”, afirma Catherine Haguenau-Moizard, professora de direito da Universidade de Estrasburgo.
Embora tenha saído de moda há muito tempo, a exigência de certificados de imunidade não é novidade. Desde 1969 circula pelos aeroportos a ficha amarela de papel da Organização Mundial da Saúde que atesta vacinação contra doenças listadas no Regulamento Sanitário Internacional (RSI) — sendo a febre amarela a única ainda no rol. Bem antes, no fim do século XIX, o Império Britânico introduziu na Índia, sua colônia, um passe que limitava a circulação interna aos vacinados contra a peste negra, que fazia sua terceira incursão pandêmica sobre a humanidade. E é prática estabelecida no mundo todo a exigência de vacinação comprovada para a matrícula de crianças nas escolas — na França, por exemplo, a lista inclui onze doenças.
De qualquer forma, o passaporte da imunidade ainda passa longe da realidade brasileira — com a pandemia em alta e a vacinação a passos lentos, a aprovação de qualquer documento oficial ainda está distante (o que, em princípio, não impede que atestados recebidos no posto de vacinação sejam eventualmente aceitos). Mais adiante, quando os brasileiros puderem de novo entrar em outros países, o Ministério do Turismo aventa a possibilidade de o aplicativo ConecteSUS ser usado para comprovar a vacinação de quem viajar ao exterior. “Um instrumento desses contribuiria para que as nações estrangeiras voltassem a nos aceitar”, diz Fernando Aith, diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP. A posição oficial da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), no entanto, é que o passaporte só fará sentido quando ao menos 60% da população brasileira estiver protegida. “São os órgãos federais que vão determinar o momento de termos esse debate”, diz Eduardo Sanovicz, presidente da associação. Sim, mas é bom ficar de olho. Depois de tantos erros e atrasos no combate à pandemia, não dá para também perder a hora do passaporte para a vida normal.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734