Executando um movimento que se supunha extinto na culta e civilizada Europa desde a II Guerra Mundial, a Rússia, em 2014, mobilizou suas forças especiais, invadiu a ponta sul da Ucrânia e anexou a seu território a Península da Crimeia. Desde então, as relações entre os dois países permanecem em estado de alta tensão, agravado pelo aberto apoio russo aos separatistas de outra região ucraniana, as províncias de Donetsk e Lugansk, na fronteira leste. Nas últimas semanas, o aumento de tropas russas em pontos estratégicos e o vazamento de planos de uma suposta ofensiva puseram os governos do Ocidente de cabelo em pé: estaria a Rússia se preparando para, de novo, invadir a Ucrânia e abocanhar mais um pedaço de seu território? Em um gesto preventivo contra problemas maiores, os presidentes Vladimir Putin e Joe Biden tiveram uma conversa reservada de duas horas, via teleconferência. Nela, segundo comunicado da Casa Branca, Biden “reiterou seu apoio à soberania e integridade territorial da Ucrânia”. Os Estados Unidos e a Europa ameaçam remover a Rússia do sistema internacional de transações financeiras caso os planos de invasão se concretizem. Mais do que isso, pouco podem fazer.
Os indícios de que a guerra civil separatista fomentada por Moscou na Ucrânia, que já matou mais de 13 000 pessoas, pode desembocar em ofensiva militar russa no país vizinho, provavelmente no início do ano que vem, partiram de um relatório da Inteligência americana que inclui fotos de satélites detalhando a movimentação de 175 000 soldados para a região e a posição de uma centena de batalhões, blindagem pesada, artilharia e outros equipamentos militares perto da fronteira oriental ucraniana. Em Kiev, o presidente Volodimir Zelenski reforçou a suspeita ao anunciar que o Kremlin vem recrutando reservistas e parece estar por trás de um projeto de golpe de Estado contra seu governo.
Tenha ou não a intenção de invadir, o presidente russo Vladimir Putin, ao pôr mais lenha em uma fogueira já crepitante, manda dois recados. Um à própria Ucrânia, tentando cortar as asas da primeira integrante da falecida União Soviética a querer romper de vez com a mãe Rússia. Outro ao mundo em geral, lembrando que Moscou, posta de escanteio pela rivalidade entre a China e os Estados Unidos, ainda tem, sim, relevância na geopolítica mundial. Faz parte de suas demonstrações de voz ativa nos destinos da Europa, pelo menos, a recente aglomeração de imigrantes vindos da África e do Oriente Médio nas portas da Polônia via Bielorrússia. O governo do ditador Alexander Lukashenko, fiel aliado de Putin, transportou boa parte deles em aviões da empresa aérea estatal e os colocou diante da barreira de arame farpado, com cortadores na mão — e por algumas semanas os países europeus conviveram com o pesadelo de uma nova onda de imigrantes indesejados invadindo suas cidades. De Moscou não se ouviu um pio de condenação a Lukashenko, um pária sob sanção dos vizinhos, que não perde a chance de provocar.
O governo russo nega estar planejando uma invasão, mas se diz no direito de se defender contra o que vê como investidas do Ocidente sobre sua área de influência, que se estende do Mar Báltico ao Mar Negro — em protesto contra esse tipo de interferência, decidiu expulsar todos os diplomatas americanos postados na Rússia há mais de três anos. A Ucrânia, de fato, se move na direção da Europa: 70% da população quer que o país faça parte da União Europeia e 60% apoiam também a entrada na Otan, a aliança militar formada para se contrapor à URSS. Há dois anos, os ucranianos puseram na Presidência, exatamente com essa bandeira, o ex-comediante Zelenski, político novato sem comprometimento com Moscou (por sinal, o mesmo que Donald Trump tentou cooptar para expor supostas negociatas do filho de seu então adversário Joe Biden, Hunter, com uma estatal da Ucrânia).
Putin acusa os membros da Otan de “cruzarem muitas linhas vermelhas” ao suprir Kiev com armas modernas e quer arrancar da aliança a promessa de que não incluirá a Ucrânia — país que tem sua história, cultura, idioma e tradições entrelaçados com a Rússia. Para complicar o vespeiro, boa parte do gás que aquece a Europa vem das reservas russas. No momento, Putin trava uma queda de braço com a Alemanha para inaugurar um novo gasoduto, enroscado no cipoal de sanções entre as duas partes. A Rússia pode não ser uma URSS, mas ainda faz barulho.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768