Um presidente historicamente impopular seria um presente para a oposição. Dois meses depois da posse do Congresso mais etnicamente diverso da história americana, uma velha rusga reacendeu nas manchetes políticas de Washington pela voz de uma jovem deputada que não teme – e não conhece bem – o vernáculo histórico do antissemitismo nos Estados Unidos. Por trás dos títulos a questão em aberto é: até onde é possível justificar o apoio incondicional a Israel, o país que mais recebeu ajuda financeira americana no pós-guerra?
Falamos de Ilhan Omar, a somaliana que passou quatro anos em um campo de refugiados no Quênia até emigrar para os Estados Unidos e construiu uma carreira política no estado de Minnesota. Ela foi eleita para a Câmara em novembro passado junto a um elenco de calouros, todos ungidos pela reação anti-Trump.
Ilhan Omar chegou em Washington sob o halo da renovação. Logo atraiu controvérsias com declarações desastradas sobre a influência de Israel na política externa americana. A deputada respondia uma pergunta sobre o poderoso grupo de lobby AIPAC (Comitê Americano-Israelense de relações Públicas), uma organização que defende os interesses de Israel e que hoje é politicamente dominada pela direita evangélica americana, quando disse: “Eu quero falar sobre a influência política neste país, que tolera a pressão pela lealdade a um país estrangeiro.”
O problema, argumentam com frequência judeus americanos, não é denunciar a influência real dos lobbies pró-Israel, e sim recorrer a clichês que remontam a marcos do antissemitismo, especialmente o centrado na Europa. Apesar de Omar ter feito outros comentários críticos tanto sobre Israel como sobre os direitos humanos na Arábia Saudita, foi essa declaração do começo de março que despertou a ira de seus colegas da bancada democrata.
A reação foi imediata e bipartidária, com alguns democratas à esquerda da liderança, como a deputada igualmente caloura Alexandria Ocaso Cortez, de Nova York, saindo em defesa da colega. Na quinta-feira 7, depois de uma semana de turbulência, o Partido Democrata passou uma resolução que não condenou Ilhan Omar nominalmente, mas o “antissemitismo e expressões odiosas de intolerância”, incluindo discriminação contra muçulmanos e qualquer outra minoria.
A deputada se desculpou por sua insensibilidade a clichês culturais do antissemitismo histórico, principalmente originado na Europa. Ilhan Omar falou em “dualidade de lealdades”, sem compreender que, historicamente, o discurso antissemita repousa, em parte, na acusação de que judeus não são leais aos países que adotaram, uma notória bandeira da propaganda antissemita sobre o judeu que trai seu país.
Um acadêmico que compreende bem a polêmica e a retaliação reservadas à deputada é Stephen Walt, o professor da Kennedy School of Government da Universidade de Harvard. Em 2006, Walt escreveu com John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, o artigo “O Lobby de Israel e a Política Externa Americana”, transformado em livro em 2007. Os autores, longe de serem identificados com a esquerda americana, foram acusados de extremo preconceito anti-Israel.
“Não tenho mais recebido o mesmo nível de hostilidade,” diz a VEJA Walt que, em fevereiro escreveu na revista Foreign Policy um artigo criticando a deputada Omar por usar o termo “lobby judeu” e não “lobby de Israel”, como é a forma correta de se referir à influência de Israel na política externa americana.
O livro de Walt e Mearsheimer argumentava que Israel é um exemplo singular da condução da política externa americana baseada em disputas políticas domésticas e prejudicial a interesses do país no Oriente Médio. “Mas alguns continuam me acusando falsamente de ser anti-Israel ou antissemita, o que tem ocasionado repercussões negativas sobre mim e minha família”, completa.
O debate sobre Israel ignora com frequência o fato de a maioria dos judeus americanos não apoiar a guinada à direita do Estado de Israel sob Benjamin Netanyahu, um fenômeno acentuado por geração. “Não há dúvida de que os americanos mais jovens, entre eles os jovens judeus, têm menos interesse em Israel e dão menos apoio a suas políticas do que os mais velhos,” diz Walt.
Na eleição presidencial de 2012, 69% dos eleitores judeus votaram em Barack Obama contra 30% que deram o voto ao republicano Mitt Romney. Em 2016, a democrata Hillary Clinton recebeu 71% dos votos judeus, e Donald Trump ficou com 24%. No domingo passado, Netanyahu não demonstrou interesse em apaziguar seus críticos americanos com uma declaração explosiva.
“Israel é uma nação-estado apenas para os judeus,” disse o primeiro ministro, em resposta a um comentário da atriz israelense Rotem Sela em defesa da igualdade para cidadãos árabes-israelenses.
“Acredito que esta declaração revela os verdadeiros sentimentos de Netanyahu e aqueles em sua coalizão de governo,” diz Stephen Walt. “Eles consideram os árabes israelenses cidadãos de segunda classe e acreditam que os palestinos vivendo sob seu controle em Gaza e na Cisjordânia não têm direito algum,” conclui.