Prestes a embarcar para a Pensilvânia, na sexta-feira 28, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, foi surpreendido por uma notícia que viria a fazê-lo suspender a agenda: uma ponte na cidade de Pittsburgh desabou, ferindo pessoas, e não havia clima para ele entoar ali o planejado discurso sobre seu trilionário pacote de infraestrutura. O episódio deu munição a opositores e observadores para imediatamente tecerem comentários de pura ironia — os últimos tempos de Biden vêm sendo assim, acompanhados de toda sorte de infortúnios, altas dores de cabeça e um leque variado de crises.
O ex-vice de Barack Obama, que no polarizado cenário americano ascendeu na esteira dos sucessivos excessos do antecessor Donald Trump, chegou ao fim de seu primeiro ano de mandato tendo de duelar com uma inflação como não se via desde os anos 1980, assombrado por uma pandemia difícil de frear, com um enrosco migratório que se avoluma na fronteira com o México e, agora, forçado pelas circunstâncias a lidar com um conflito espinhoso envolvendo um território que ele conhece bem — Ucrânia e Rússia —, mas é permeado de armadilhas nas quais não pode se enredar. “O governo enfrenta um perigo genuíno na Europa, que representa ao mesmo tempo um desafio para sua solidez e uma chance para se recuperar”, avalia o cientista político John Tures, da LaGrange College.
Os termômetros para aferir o desempenho do presidente até o presente não lhe têm favorecido. O mais recente mostra que, se o pleito para o posto maior da nação fosse hoje, Biden (40%) perderia para Trump (46%) — pesquisa, aliás, que deixou democratas já insatisfeitos à vontade para ventilar uma possível candidatura da ex primeira-dama Hillary Clinton, derrotada nas eleições de 2016. Evidentemente falta chão até 2024, mas a aprovação presidencial precisa começar a se elevar: atualmente, ela patina em 39%, segundo o instituto Harvard CAPS/Harris, uma das piores da história de um ocupante do Salão Oval após um ano no poder.

Para tentar virar o jogo, Biden adicionou doses de agressividade à retórica, aproveitando-se do marco de um ano da ensandecida invasão do Capitólio para atacar Trump e os republicanos. Também abandonou o tom conciliador para alvejar a oposição quando ela barrou uma reforma eleitoral mirando o aumento dos votos de minorias, o que favoreceria os democratas em um momento delicado. Novembro é mês de eleições para o Congresso, e os republicanos podem levar a melhor. No afã de polir a imagem e galvanizar eleitores, Biden anunciou que indicaria a primeira juíza negra à Suprema Corte. Na quinta-feira 3, veio aos holofotes com um trunfo na mão: anunciou que o líder máximo do grupo terrorista Isis havia sido eliminado por forças americanas na Síria. “Ele sabe que precisa mudar o modo como se posicionou no primeiro ano de governo”, diz o cientista político William Galston, do Brookings Institution.
O confronto das promessas de campanha com a realidade, sempre um choque, afetou Biden em muitos níveis. Ele elegeu-se se apresentando como um contraponto racional ao negacionismo dos trumpistas na crise pandêmica, de fato expandiu a imunização e a testagem, mas não conseguiu demolir o muro dos antivacina, um grupo inflexível que impõe um teto à contenção do vírus. E aí surgiu a ômicron, variante que se disseminou como nenhuma outra, emperrando algumas cadeias produtivas. Biden deu um gás à economia ao passar um parrudo pacote de estímulos. O crescimento veio, embalado pela maior taxa anual desde 1984 — 5,7%. O problema é que a inflação, de 7%, tem engolido os ganhos individuais e a sensação de bem-estar, o que faz o americano expressar um ceticismo que, aos olhos de certos países de PIB estagnado, pode soar incompreensível.
Uma frente de disparos contra Joe Biden vem de representantes de seu partido, que deixaram escapar que o chefe havia passado o primeiro ano perdido nos labirintos da burocracia e esqueceu-se de se posicionar como um líder. A atabalhoada retirada das tropas americanas do Afeganistão reforçou essa ideia, que agora Biden tem a oportunidade de reverter, a depender de como vai se sair no intrincado tabuleiro posto pela crise na Ucrânia. “Ele quer se mostrar ao mundo como um líder disposto a evitar o uso agressivo da força militar e, no lugar dela, focar nas alianças e na oposição ao autoritarismo”, diz William Taylor, ex-embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia. Com o nó do conflito sem desatar, porém, Biden reforçou o pelotão americano no Leste Europeu, enviando e realocando soldados, ainda que não demonstre interesse em um desfecho bélico — custoso sob vários pontos de vista. Resta ver como a diplomacia se desenrola. Em recente aparição pública, o presidente Vladimir Putin afirmou que os Estados Unidos estão ignorando “as preocupações da Rússia”. Não há trégua para Biden em nenhum front.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775