Durante a primeira cúpula entre Estados Unidos e China após a posse de Joe Biden, em março, no Alasca, o tom subiu. Diante das cobranças do secretário de Estado americano, Antony Blinken, por mais democracia em Hong Kong e Taiwan e melhor tratamento das minorias na China, o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, sugeriu, sem meias-palavras, que a Casa Branca desistisse de “impor sua ideia de democracia” pelo mundo e voltasse os olhos para seus próprios “profundos problemas” em relação aos direitos humanos, entre eles o racismo. A fala de Blinken estava dentro dos padrões de assertividade e jogo duro da diplomacia americana, mas a disposição chinesa de se engajar em um bate-boca de quase uma hora diante da imprensa causou surpresa, visto que a regra de Pequim sempre foi priorizar a discrição e preferir as insinuações sutis nos embates verbais. A troca de acusações evidenciou uma mudança na política internacional do presidente Xi Jinping: firme no propósito de fortalecer a imagem da China potência e rebater provocações estrangeiras, ele está optando por uma diplomacia belicosa, pautada por ataques principalmente via redes sociais.
A estratégia está presente nos comunicados diários emitidos pelo Ministério de Relações Exteriores e nas falas dos embaixadores que representam o país ao redor do mundo — e o Brasil já sentiu o gostinho nos seguidos choques entre o enviado chinês em Brasília, Yang Wanming, e o clã Bolsonaro. A manifestação oriental mais recente foi a indicação de um duro crítico do Ocidente, Qin Gang, para o comando da Embaixada da China em Washington. Os novos diplomatas de Pequim não deixam provocação sem resposta, no estilo “lobos guerreiros” — referência ao título de uma série de filmes sobre soldados das forças especiais que combatem mercenários estrangeiros que bateu recordes de bilheteria na China entre 2015 e 2017. “Quem ofender a nação chinesa será punido, não importa a distância do agressor”, diz um dos personagens do blockbuster patriota, verbalizando o conceito adotado pela diplomacia do Partido Comunista.
Indo além da linguagem forte e das ameaças veladas, os diplomatas chineses apostam na força das redes sociais para passar recados e, às vezes, propagar notícias falsas e teorias conspiratórias sobre países rivais. O Executivo francês já convocou duas vezes este ano o representante da China para prestar explicações sobre sua conduta na internet. Lu Shaye costuma responder em seus perfis às denúncias de abusos de direitos de Pequim contra a minoria muçulmana uigur feitas pela União Europeia e chegou a compartilhar um artigo falso que acusava o sistema de saúde do presidente Emmanuel Macron de abandonar idosos com Covid-19, além de se referir a um analista politico local como “bandido mesquinho” e “hiena enlouquecida”. No Brasil, a linguagem de Yang Wanming causa desconforto não só no governo — que já pediu duas vezes sua substituição —, mas até nas outras representações diplomáticas. Depois de trocar farpas com os filhos de Bolsonaro, Yang comemorou com ironia a prisão do ex-deputado aliado do presidente, Roberto Jefferson: “Lindo dia para todos”, postou no Twitter. “Em nossos genes, não há traços agressivos ou hegemônicos”, afirmou a VEJA o ministro-conselheiro da embaixada em Brasília, Qu Yuhui.
Essa forma assertiva de os corteses chineses lidarem com as relações internacionais causa espanto no Ocidente, por contrastar com o tom mais moderado e construtivo instituído na era Deng Xiaoping, o líder chinês entre 1978 e 1992. “Durante a liderança Mao Tse-tung, o país nutriu relações muito ruins com seus vizinhos, mas com a abertura promovida por seu sucessor Deng Xiaoping adotou-se uma forma de diálogo moderada e construtiva”, diz Roberto Abdenur, ex-embaixador e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Por trás dos “lobos guerreiros” da diplomacia atual está Zhao Lijian, raivoso porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros que se tornou figura de grande influência junto a Xi. Em novembro passado, Zhao publicou a imagem — evidentemente falsa — de um soldado australiano esfaqueando uma criança afegã, em clara provocação ao primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, de relações cortadas com a China há quase um ano. Pouco tempo depois, em um sinal de aceitação das táticas de Zhao, a Academia de Ciências Sociais, um grupo de estudos semioficial, divulgou uma série de documentos estratégicos sobre a necessidade de “fortalecer a capacidade de lutar pela opinião pública internacional” e “contra-atacar” críticas nas redes.
Em Washington, prevê-se que a presença do embaixador Qin Gang, no cargo há menos de um mês, suba o tom da guerra surda entre Estados Unidos e China. “A relação entre as duas potências se tornou mais complexa porque, em vez da metralhadora indiscriminada de Donald Trump, o presidente Biden toca em temas como democracia e direitos humanos”, avalia o ex-embaixador e conselheiro consultivo internacional do Cebri Marcos Caramuru. A primeira grande missão de Qin é preparar o terreno para o encontro cara a cara entre Biden e Xi durante a reunião do G20 na Itália, em outubro. “A agressividade dos chineses, ao mesmo tempo que expõe sua força crescente, também aliena possíveis parcerias, o que pode ser prejudicial”, lembra Robert Sutter, da Universidade George Washington. Nessas horas, o pragmatismo e a delicadeza da diplomacia tradicional deverão fazer falta.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753