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Donald Xi e Jinping Trump

Protagonista e antagonista do confronto mundial do ano medem forças, virtudes e defeitos, num kung fu que deixa o resto do planeta tremendo

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 16h02 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00
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  • selo-retrospectiva-2018Disse um grande sábio chinês sobre como alcançar o verdadeiro caminho para a vitória: “Encontre o ponto fraco do seu adversário e faça com que sofra com isso. Use a própria força dele contra ele mesmo, até que finalmente caia ou desista”.

    A identidade do mestre será revelada no fim desta reportagem sobre a mais incrível, fabulosa e perigosa luta do ano: a guerra comercial entre Donald Trump e Xi Jinping. Ela não vai definir se a China ultrapassará os Estados Unidos como superpotência, pois os fatores envolvidos nessa corrida são infinitamente mais complexos. Mas pode desencadear desde mais uma crise financeira mundial daquelas que os economistas habi­tual­mente prognosticam (sem medo de errar, pois as crises mundiais são periódicas) até algum tipo de acordo que permita a Trump mostrar suas habilidades negociadoras — e, claro, pavimentar o caminho para a reeleição em 2020.

    Xi Jinping
    “O PRESIDENTE DE TUDO” – Xi Jinping, cabelo asa da graúna e meio sorriso: tratamento bajulatório (Fred Dufour/AFP)

    Raramente dois adversários de estilos tão diferentes, e em condições internas tão diversas, se defrontaram num Grande Jogo dessas dimensões. Chamado de “o presidente de tudo” por ter deglutido todos os cargos mais importantes do regime de partido único, com seus cabelos tingidos de negro asa da graúna e meio sorriso como expressão pública permanente, Xi Jinping reativou até o culto à personalidade, sutilmente sepultado depois da morte de Mao Tsé-tung, seu exemplo máximo, e das reformas iniciadas por Deng Xiaoping.

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    Entre as múltiplas e bajulatórias formas de tratamento usadas recentemente pela máquina de propaganda chinesa constam: “O homem que faz as coisas acontecer”, “Servidor do povo”, “Comandante supremo da reestruturação militar”, “Arquiteto da modernização para a nova era”. Depois de ser reeleito presidente pelo Congresso Nacional do Povo, com direito a continuar no cargo por quanto tempo quiser (dá para adivinhar quanto será?) e com seu “pensamento” incorporado à Constituição, foi chamado pelo jornal do partido de “Timoneiro da Nação” e “Guia do Povo” — termos que remetem sombriamente ao maoismo.

    É até cômico comparar essa reverência servil com o escracho constante a que Trump, com os cabelos tingidos de loiro-milho e o sorriso de Coringa, é submetido pela elite da imprensa, da academia e das artes nos Estados Unidos. Grandes sumidades em política como a cantora Cher, a veterana atriz Jane Fonda e Barbra Streisand, que preenche as duas categorias, usaram termos semelhantes para descrever Trump: Hitler, Hitler e Hitler. As invectivas de um ator consagrado como Robert De Niro não podem ser sequer reproduzidas — só inferidas. Até a estrela de Trump na calçada da fama no Hollywood Boulevard, da época do programa O Aprendiz, foi várias vezes vandalizada. O comediante George Lopez fingiu urinar sobre ela, um ato levado mais ao pé da letra por cidadãos comuns em torno dos clubes de golfe de Trump. A nomeação do juiz Brett Kavanaugh, à qual se seguiram acusações não comprovadas e manipuladas de abusos sexuais na juventude, quase provocou uma guerra civil — expressão, aliás, usada com frequência assustadora. E uma boa parte do establishment torce para que Trump perca a guerra comercial com a China — ou seja, torce contra o próprio país, considerando que destruir o presidente está acima de tudo. Mesmo que nem a mais inocente das almas possa alegar desconhecimento sobre o mau comportamento da China em escala fenomenal: subtração de tecnologia dos países avançados, obviamente com os Estados Unidos à frente; subsídios em massa muito mal disfarçados; exigências de transferência de tecnologia e de participação minoritária a empresas estrangeiras; dumping e espionagem industrial. Tudo isso enquanto Xi Jinping faz longos e criteriosamente hipócritas discursos sobre os benefícios do livre-comércio e os males do protecionismo.

    O caso da Huawei, que estremeceu os mercados depois que o Canadá executou um pedido de prisão da executiva e herdeira Meng Wanzhou, que usa o nome ocidental de Sabrina, é exemplar. Durante as últimas três décadas, ela passou de empresa iniciante de comutadores de telefone criada por um engenheiro pesquisador saído do Exército de Libertação do Povo, Ren Zhengfei, para o posto de maior fabricante de telecomunicações do mundo e segunda maior de smartphones. Deixar a Ericsson e a Apple para trás não é para qualquer um. Também não é qualquer um que pega uma coisinha da Cisco, outra da Motorola, mais outra da Nortel, gigantes muito preocupados em proteger seus segredos tecnológicos, mas não impermeáveis ao ataque em massa de agentes de um Estado poderoso, organizado e milimetricamente planejado para se tornar a maior potência tecnológica do mundo em questão de alguns anos.

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    A aliança carnal empresa-Estado ganhou tamanha dimensão que os mais fortes aliados dos Estados Unidos em operações de inteligência — os demais componentes de língua inglesa dos Cinco Olhos: Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia — estão caindo fora ou nem deixando a Huawei entrar na implantação da rede 5G. Na Grã-Bretanha, até os equipamentos da Huawei para 3G e 4G estão sendo desativados depois que o serviço de inteligência indicou o risco de espionagem em massa de todos os celulares conectados às redes. Os especialistas chamam isso de backdoor — uma porta secreta de acesso que, aliás, as agências americanas de espionagem, apesar de um arsenal mais poderoso ainda, adorariam ter.

    A prisão da filha do dono da Huawei azedou a “trégua de Buenos Aires”, o acordo no qual os americanos concordaram em adiar por três meses o aumento de tarifas sobre produtos chineses que entraria em vigor na virada do ano. Enquanto Donald Trump e Xi Jinping se encontravam cara a cara, com as respectivas equipes, Sabrina Meng Wanzhou estava sendo detida, durante uma escala no Canadá, por causa de um pedido de extradição feito por procuradores federais, sob a acusação de a Huawei vender equipamentos tecnológicos fabricados nos EUA ao Irã, apesar das sanções americanas, através de empresa de fachada.

    O laboratório de pesquisas da Huawei fica num prédio em Shenzhen construído como uma imitação da Casa Branca. Num lago, três cisnes negros — uma referência à teoria sobre eventos improváveis. A prisão da filha do dono do império certamente se enquadra na categoria. Qual sequência de acontecimentos pode desencadear? As reclamações diplomáticas da China tratam o caso como uma questão de Estado.

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    Como vai acabar essa guerra comercial? Os dois adversários conhecem os respectivos pontos fracos e sabem que a força de cada um pode virar um instrumento de autodestruição. O déficit comercial americano atingiu em outubro o nível mais alto da última década. A China comprou menos soja, em protesto contra as tarifas trumpianas, e os americanos compraram mais produtos chineses, antecipando justamente o aumento dessas tarifas.

    Mestre Shifu
    MESTRE SHIFU – O sábio do Kung Fu Panda, de olho no ponto fraco do adversário (//Divulgação)

    O “golpe” do aumento de tarifas da soja americana mostrou como esse tipo de combate tem uma dinâmica ardilosa. A China mirou cirurgicamente no coração do eleitorado trumpista, as áreas rurais do interiorzão americano. Virar a opinião dessa base fiel era fazer o adversário sofrer em seu ponto fraco, a eleição legislativa que estava por vir. Trump usou a força do oponente contra ele: liberou 12 bilhões de dólares para os produtores, apelando a seus sentimentos patrióticos numa fase de dificuldades temporárias que levariam a uma vitória gloriosa. Três senadores democratas perderam a reeleição, o que garantiu a maioria republicana no Senado.

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    Foi apenas um round da luta. Com todas as manobras do “homem das TARIFAS” — como se definiu Trump, em maiúsculas, como exige o protocolo abusado do Twitter —, o déficit comercial com a China ultrapassou 340 bilhões de dólares de janeiro a outubro deste ano.

    E se a China decidir usar sua “arma nuclear”, o astronômico 1,3 trilhão de dólares que tem em títulos do Tesouro americano? Os Estados Unidos com certeza vão tremer — e o resto do mundo sofrerá um terremoto. Mas a China vai fazer o que com a montanha de dólares que a gigantesca máquina exportadora não para de produzir? E o que teria a ganhar com outra crise mundial?

    Nesse kung fu em escala planetária, a grande vantagem do ponto de vista da China é que Donald Trump é um problema temporário. Se não for “abreviado”, tem mais dois anos. Ou seis, no caso, por enquanto bem hipotético, de reeleição. Pode “cair ou desistir” antes, arrastado pela instabilidade do mercado financeiro e do furor político interno? Ou conseguirá algum tipo de concessão, suficiente para cantar de galo, sabendo muito bem que não existem vitória ou derrota definitivas nesse embate?

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    Ah, sim: o grande sábio citado lá no começo é o Mestre Shifu, o panda-vermelho que treina o desajeitado Po na arte marcial nascida na China, na série Kung Fu Panda. O encanto e a graça dos personagens, o uso habilidoso e universal de elementos da cultura chinesa e o próprio protagonista, o animal-símbolo da China, fizeram a fama e o sucesso da animação da DreamWorks. “Por que não conseguimos fazer um filme assim?”, perguntou um diretor chinês na época do lançamento da primeira fita da série.

    O resultado do kung fu comercial entre Donald Trump e Xi Jinping terá muito a ver, também, com a resposta a essa pergunta.

    Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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