No país onde o debate intelectual é esporte nacional, praticado nos cafés, no jantar entre amigos e em programas de TV de grande audiência, a política da França transitou até recentemente entre a esquerda moderada e a direita civilizada. Duas ondas migratórias, uma série de trágicos atentados terroristas e a economia em marcha lenta fizeram a balança começar a pender para um conservadorismo diferente, mais virulento e radical. Espelhado na ascensão da Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen, xenófobo e antissemita confesso, seu atrativo se limitava em grande parte à população empobrecida e menos educada. Não mais. A quatro meses da eleição presidencial de abril, a campanha está reabrindo antigas feridas, que se julgavam cicatrizadas pela II Guerra, das quais jorra um ultradireitismo pretensamente sofisticado, usado para envernizar posições racistas e nacionalistas em defesa da “verdadeira” identidade francesa.
Nesse cenário, Emmanuel Macron, virtual candidato à reeleição e à frente nas pesquisas, tem como potente adversário o não político Éric Zemmour, escritor, apresentador e polemista profissional (além de quase sósia de Charles Aznavour) que recheia seu discurso incendiário sobre a “desvirtuação” da alma francesa por culturas e religiões alienígenas com citações literárias e ironias — tudo o que uma parcela do eleitorado culto das metrópoles precisava para abraçar teses até há pouco trancadas na gaveta de extremismos inaceitáveis. “A França tem uma tradição de partidos e forças conservadoras. Mas as ideias radicais difundidas hoje nos aproximam cada vez mais do modelo político vigente na Hungria e na Polônia, algo inimaginável há vinte anos”, diz Yves Sintomer, cientista político da Universidade Paris 8.
Aos 63 anos, Zemmour, que conta com 15% das intenções de voto e já foi condenado várias vezes por incitar a discriminação, tem entre suas bandeiras a realização de um referendo para restringir a entrada de imigrantes e proibir que recém-nascidos recebam nomes estrangeiros. “Eu decidi tomar as rédeas para salvar o país do trágico destino que o espera”, bradou ao anunciar sua candidatura independente no fim de novembro. Além dos imigrantes, saco de pancadas de toda a direita europeia, a questão da identidade nacional e a glorificação do passado são pontos de destaque não só nas suas falas, como na de pensadores e escritores da ultradireita que passaram anos escanteados pela sociedade e agora são presença constante em programas de debates com auditório ao vivo e nos noticiários locais.
A republicação este ano de A Grande Substituição, de Renaud Camus, escritor que apela de uma condenação à prisão por incitar o ódio racial, deu novo alento à teoria conspiratória segundo a qual o “povo francês” está cedendo lugar a uma maioria de estrangeiros procedentes das antigas colônias. Na imprensa de direita, que possui um novo canal, o CNews — uma espécie de Fox News francesa —, para divulgar ideias impensáveis até pouco tempo atrás, feitos militares são engrandecidos e há manifesta admiração pelo regime de Vichy, um governo fantoche liderado pelo marechal Philippe Pétain que a Alemanha nazista instalou nessa cidade quando ocupou a França, na II Guerra — por sinal, já mereceu elogios do próprio Zemmour, judeu, filho de imigrantes argelinos. “Suas crenças extremamente antiquadas e seus ataques às mulheres, à comunidade LGBT, aos muçulmanos e aos judeus são perigosos para a democracia”, alerta Robert Gildea, especialista em história francesa da Universidade de Oxford.
O apelo dessa direita radical mais, digamos, chique acabou prejudicando justamente a mais forte candidata conservadora, Marine Le Pen, filha do fundador da Frente Nacional que, de olho nos eleitores moderados, mudou o nome do partido para Reagrupamento Nacional e suavizou posições — entre outras coisas, deixou de apoiar a saída da França da União Europeia e da zona do euro. Mesmo assim, é para a direita que se movem todos os principais candidatos — Valérie Pécresse, recém-lançada por Os Republicanos (novo nome do partido de Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac), aceitou a indicação dizendo: “Entendo a raiva das pessoas que se sentem impotentes diante da violência, do separatismo islamista e da imigração descontrolada”. O próprio Macron, candidato independente eleito com agenda liberal em 2017, promove uma cruzada contra conceitos vindos de fora que estariam minando a cultura francesa, baixou regras para conter o tal separatismo islamista e aprovou uma lei dando mais liberdade de ação à polícia. Enquanto a esquerda se fragmenta e perde influência, a França da “liberdade, igualdade e fraternidade” dá voz cada vez mais alta à ala que prega o contrário de tudo isso.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771