Depois de armar um cerco de navios, tanques e tropas no pontilhado da fronteira com a Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin obteve ao menos um êxito: pôs-se sob os holofotes e colocou o mundo inteiro a se indagar se as garras exibidas por ele são só para assustar ou se vão desembocar no que pode se converter no maior conflito desde a II Guerra Mundial. Uma sequência de movimentos visíveis e invisíveis, estes nos bastidores das altas esferas do poder global, indicam um tabuleiro ainda indefinido, em que cabem costuras diplomáticas para frear uma guerra custosa que, no fundo, não interessa a ninguém.
Putin faz uma investida demasiadamente audaciosa ao avisar aos quatro cantos do planeta, com todos os gestos a seu alcance, que a Ucrânia, ex-república soviética, está sob sua área de domínio e portanto não pode aderir à Otan, aliança militar criada em 1949 para proteger as forças do Ocidente. Cioso de não ceder espaço no quinhão do mundo que já esteve sob o guarda-chuva da União Soviética, o czar também bate pé para que a Otan retire sua presença de nações do Leste Europeu, como Romênia e Bulgária, e pede a remoção de armas nucleares americanas do Velho Continente. É um pôquer de aposta elevada, visto pelas potências ocidentais como inaceitável.
Nesse jogo de desenrolar imprevisível, os últimos dias marcaram uma escalada da tensão, elevando a fervura. Relatórios confidenciais vazaram, um deles do governo americano, indicando que o Kremlin estaria preparando operações de sabotagem para justificar a invasão da Ucrânia — país, aliás, do qual os russos já engoliram a ponta sul, anexando a Península da Crimeia, em 2014. No sábado 22, o Reino Unido disse ter obtido informações de que Putin havia traçado um plano para instalar um líder pró-Rússia em Kiev, o que custaria a cabeça do atual presidente, o ex-comediante Volodimir Zelenski, um novato na política sem laços com Moscou.
Os britânicos começaram então a despachar para a Ucrânia armas antitanque, enquanto o governo de Joe Biden, que prefere qualquer cenário a precisar se enredar militarmente no enrosco, deixou 8 500 homens de prontidão. “Esta é a empreitada militar mais ousada desde a II Guerra”, avaliou Biden, que cometeu uma de suas gafes ao afirmar em coletiva na Casa Branca que uma invasão russa em menor escala levaria a uma resposta na mesma medida, mais suave, deixando entrever ao mundo que a Otan não caminha tão unida assim. Depois, tentou apagar a impressão. Em seu estilo czarino, Putin, que andou expulsando diplomatas americanos postados em seu país, limitou-se a falar que o vaivém de tropas é nada além de rotina e disparou: “Toda essa reação não passa de histeria.”
Armas da diplomacia estão sendo empregadas à exaustão, até agora sem resultado palpável. Ameaças de sanções à Rússia em dimensões “jamais vistas”, segundo definiu Biden, também não parecem ter abalado por ora o gélido semblante de Putin. Em busca de espaço na intricada geopolítica global, o presidente francês Emmanuel Macron, que acumula a presidência do Conselho da União Europeia, expôs diferenças de visões diante do problemão. Ele é favorável a que os europeus mantenham postura independente dos americanos e linha direta com Moscou. Já a Alemanha envereda por outra trilha, que não só não contempla reforçar a artilharia pró-Ucrânia, como envolve a manutenção de negócios no campo energético com os russos. A metade da poderosa indústria alemã é abastecida pelo gás enviado pela Rússia, e o chanceler Olaf Scholz já adiantou que continuará a importá-lo, provocando mal-estar entre os aliados. “A Europa se vê diante de seu maior desafio em décadas e não há consenso sobre o que fazer para debelar a crise”, alerta Marie Jourdain, especialista em diplomacia europeia do Atlantic Council, de Washington.
No apagar das luzes da União Soviética, em 1991, a Otan, agora lançada ao centro da contenda, foi perdendo a relevância. Mas abocanhou membros que estavam do outro lado da cortina de ferro. Durante uma cúpula realizada em 2008, os Estados Unidos jogaram à mesa a ideia de que Ucrânia e Geórgia (invadida por Moscou no mesmo ano), ambas ex-repúblicas da União Soviética, iriam, elas também, “se tornar sócias no futuro”. A promessa foi reiterada no final de 2021. Desta vez, porém, Putin digeriu muito mal o convite. “Eles acham que vamos assistir a isso de braços cruzados?”, esbravejou em reunião com estrategistas.
O caso ucraniano é particularmente sensível, já que o imenso território pertenceu ao império russo por quatro séculos, continuou com governantes subservientes ao Kremlin e mantém fortes laços culturais com o vizinho. Com a derrocada do bloco comunista, a história deu uma virada, e os ucranianos iniciaram uma lenta aproximação com o Ocidente — movimento que culminou, em 2013, na revolução popular em que sobretudo os jovens clamavam pela adesão da Ucrânia à União Europeia. A demanda não foi atendida, mas o levante serviu para derrubar o governo pró-Moscou e desencadeou um ciclo de reformas. A fúria russa veio na forma da anexação da Crimeia e no armamento de rebeldes simpáticos ao Kremlin, que iniciaram uma guerra civil separatista que já ceifou 14 000 vidas ao leste do país. “Putin vem demonstrando que não medirá esforços para recuperar o antigo poder da Rússia”, avalia Keir Giles, especialista em relações diplomáticas europeias do Chatham House, de Londres.
Observadores do que se desenrola naquelas bandas do globo acreditam que a subida no tom de Putin pode acabar por atrapalhá-lo. Na quarta-feira 25, os Estados Unidos rejeitaram formalmente as propostas russas para dar fim à crise, entre elas a redução da Otan a seu tamanho antes de absorver membros ex-comunistas — hoje ela conta com trinta países — e o tão martelado veto ao ingresso da Ucrânia à organização. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, ressaltou, no entanto, que as tratativas seguem. “A guerra ou a paz dependem da reação russa”, disse Blinken. Por precaução, a orientação oficial é que todos os cidadãos americanos deixem a Ucrânia. “Putin mergulhou o continente numa espiral de insegurança”, analisa Wolfgang Ischinger, do fórum de política internacional Munich Security Conference. Nos próximos dias, os Estados Unidos devem travar mais uma rodada de conversas com a Rússia, mas a guerra de nervos não dá sinais de arrefecer.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774