No tabuleiro das potências mundiais, os movimentos são pensados, pesados, manipulados via redes sociais e divulgados de acordo com os interesses de cada um. Assim tem sido com o posicionamento de 150 000 soldados russos, reforçados por blindados e armamento pesado, ao longo de três lados da fronteira com a Ucrânia. O jogo deslanchado pelo presidente Vladimir Putin há mais de um mês vem sendo rebatido, lance a lance, por ameaças e declarações semibelicosas do americano Joe Biden. Nos últimos dias, o embate subiu de tom, com a diplomacia americana marcando data — quarta-feira 16 — para a Rússia invadir a Ucrânia e se embrenhar em um ato de guerra inimaginável entre países civilizados no século XXI. Em vez disso, o presidente russo, que insiste na tese de que suas Forças Armadas estão praticando rotineiros exercícios militares (por coincidência, em volta do território ucraniano), anunciou o fim de uma parte das manobras e o retorno do efetivo aos quartéis.
Afrouxou o nó, sem desfazer o laço: os Estados Unidos duvidaram do recuo e denunciaram, ao contrário, a chegada de mais 7 000 soldados. Biden insistiu: a invasão é questão de dias. Qualquer que seja o desfecho da crise, Putin, velha raposa política, parece ter alcançado seu intento de sacudir as teias de aranha da decadente Rússia pós-União Soviética e recolocar o país entre os que dão as cartas na geopolítica internacional. A exibição de força no exterior também rende benefícios internamente. A alardeada disposição de salvar a Ucrânia das garras do Ocidente mobiliza os russos em torno de um presidente que viu a pandemia, a economia estagnada e o arrocho contra a oposição tirar lascas profundas de sua popularidade. Do lado oposto do ringue, Biden, outro impopular no campo doméstico muito interessado em desviar atenções, tratou de cooptar a Europa para seu balé de advertências e promessas de retaliação. Meio a contragosto, Alemanha, França e vizinhos vão retornando ao papel de parceiros incondicionais, desgastado pelas acintosas desfeitas praticadas por Donald Trump. Alegria mútua adicional: os olhos do mundo na Ucrânia desviaram a atenção da Olimpíada de Pequim e da China, rival comum no palco geopolítico (apesar dos rapapés trocados entre Putin e Xi Jinping na abertura dos Jogos).
Ungido de renovada relevância, o presidente russo mantém a tática de esconder as cartas na manga. Depois de anunciar que dois batalhões localizados ao sul e a oeste da Ucrânia teriam levantado acampamento, o Ministério da Defesa russo divulgou o vídeo de um comboio militar deixando a região da Crimeia — muito citada hoje como prova de más intenções. Moscou ajudou a “liberar” a província de maioria russa da Ucrânia e a anexou em 2014. “É óbvio que não queremos uma guerra. Por isso apresentamos propostas para um processo de negociação”, disse Putin ao se reunir — cada um em uma ponta de uma mesa de 6 metros — com o chanceler alemão Olaf Scholz, que viajou a Moscou para tentar mediar a crise. Antes dele, o francês Emmanuel Macron foi recebido com palavras igualmente ocas e idêntico distanciamento — ambos se recusaram a se submeter a testes de Covid-19, para não deixar uma amostra de DNA nas mãos do governo russo — e foram impedidos de chegar perto do anfitrião. No meio do entra e sai, o presidente Jair Bolsonaro pousou no Kremlin para uma extemporânea visita oficial. Pertinho de Putin (sinal de que deixou o DNA), o direitista de quatro costados se disse “solidário com a Rússia” — isso depois de depositar uma coroa no túmulo do soldado comunista desconhecido.
Colocando-se como escudo que não se deixa levar pelas balelas espalhadas por Moscou, a Casa Branca informou que o monitoramento via satélite não indica remoção de tropas na fronteira ucraniana. “Há o que a Rússia diz e há o que a Rússia faz. Não vimos nenhum recuo de suas Forças”, afirmou o secretário de Estado, Antony Blinken. “Se a Rússia atacar a Ucrânia, será uma guerra de escolha, sem causa ou razão”, reforçou Biden — com boa dose de razão, aliás. O ponto de atrito declarado de Putin com Estados Unidos e Europa Ocidental é o desejo manifesto da Ucrânia de fazer parte da Otan, a aliança militar da Guerra Fria que se contrapunha ao extinto Pacto de Varsóvia. A Rússia vê a nação ucraniana como uma extensão da sua própria, se arrepia com a possibilidade de ter o arsenal da aliança ocidental na sua porta e não admite a “traição”. Claro que um país livre não pode obrigar outro país livre a fazer o que não quer, mas quem tem o Exército Vermelho tem a força.
A condição de Putin para deixar em paz o vizinho é a Otan se comprometer a não aceitar países que ele considera estar naturalmente na sua órbita — e, de quebra, remover sistemas de mísseis instalados na Polônia e vizinhanças. Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano no olho do furacão, já insinuou que a adesão talvez seja um “sonho” inalcançável. Aventou ainda um plebiscito sobre a adesão à Otan, abrindo a porta para que a população, acuada, refute a ideia. Um empurrão nessa direção foi o devastador ataque cibernético — o tipo de crime que, em nove entre dez casos, tem origem na Rússia — de que a Ucrânia acaba de ser alvo.
Complicando mais o cenário, o Parlamento russo aprovou uma moção para que Putin reconheça como independentes duas “repúblicas” declaradas unilateralmente por movimentos separatistas na região de Donbas, a leste da Ucrânia e grudadas na Rússia. O presidente não se manifestou, mas todo mundo sabe que, se pretender mesmo invadir a Ucrânia, a desculpa mais à mão é repetir o modelo Crimeia e, a pedidos, despachar soldados para garantir a sobrevivência das novas “nações”. “Putin embarcou em um projeto de restabelecer o império russo na Europa. Isso passa pela reconstrução do Exército, modernização do arsenal nuclear, expansão dos serviços e atividades da inteligência e pelo enfraquecimento de qualquer oposição política”, analisa Kurt Volker, membro do Center for European Policy Analysis e ex-representante americano na Otan.
A Rússia fornece boa parte do gás que aquece a Europa no inverno rigoroso e, no atual clima de confronto, os europeus correm em busca de novos fornecedores, até agora sem sucesso. Uma das ferramentas usadas por Biden para pressionar Putin é justamente emperrar a entrada em funcionamento de um novo gasoduto, pronto para operar, entre o país e a Alemanha. Os Estados Unidos também brandem com frequência a ameaça de cortar o acesso da Rússia ao sistema financeiro internacional, uma sanção que os especialistas consideram facilmente contornável. Americanos e europeus têm reforçado o arsenal e o treinamento das Forças Armadas ucranianas, mas não há chance de que elas venham a se equiparar às russas. Muita conversa está prevista para as próximas semanas, várias delas olho no olho, ainda que a 6 metros de distância. Quem vai piscar primeiro?
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777