A denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, por crimes contra a humanidade e genocídio provavelmente será “engavetada”. Esta é a segunda denúncia contra o líder brasileiro na instituição global e, para especialistas em direito internacional, “é difícil caracterizar juridicamente a omissão de Bolsonaro frente à pandemia como genocídio”.
“Em direito, é preciso que as denúncias tenham materialidade, um conjunto de elementos e circunstâncias que evidenciam a criminalidade de um ato”, afirma Cláudio Finkelstein, professor de direito internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Foi uma acusação mais política do que jurídica, por isso deve ser engavetada”.
Neste domingo 26, uma coalizão de entidades sindicais submeteu uma ação à procuradora-geral do Tribunal, a gâmbia Fatou Bensouda, que diz respeito às ações do presidente durante a crise de saúde gerada pela pandemia de coronavírus.
Citando a desorganização do Ministério da Saúde, o desrespeito de Bolsonaro ao isolamento social (contribuindo para aglomerações com aparições públicas) e a pressão pelo uso da cloroquina sem comprovação da sua eficácia, o documento diz que a “atitude de menosprezo, descaso e negacionismo” do presidente em relação às vítimas da pandemia “caracteriza crime contra a humanidade – genocídio”.
A ação foi assinada pela Rede Sindical Brasileira UNISaúde, representante de profissionais de saúde e braço da UNI Global Union, federação sindical com sede na Suíça que atua em 150 países e atende mais de 20 milhões de profissionais. Também são signatários outros sindicatos, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT).
É improvável que a corte em Haia reconheça a denúncia, já que atua em grandes casos de crimes contra a humanidade, genocídios, crimes de guerra e de agressão. “Centenas de pedidos de fato chegam todos os dias, mas em 22 anos de existência, apenas 22 processos foram concluídos. As acusações contra Bolsonaro não são suficientes para se caracterizarem como genocídio ou crime contra a humanidade perante o direito internacional”, diz Valerio Mazzuoli, professor de direito internacional da Universidade Federal de Mato Grosso.
O especialista destaca, contudo, que o TPI não foi pensado para uma pandemia. Portanto, surpresas não devem ser descartadas.
Segundo round
Em novembro passado, Bolsonaro foi denunciado no mesmo Tribunal Penal Internacional pela Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), por supostamente incentivar o genocídio indígena colocando a demarcação de terras em oposição ao desenvolvimento do país, estimulando a grilagem e garimpagem na Amazônia e desmantelando órgãos ambientais.
Para Acacio Miranda da Silva Filho, professor de direito penal das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), a nova denúncia cai no mesmo campo subjetivo. “Não é possível cravar quanto a suposta omissão de Bolsonaro foi responsável pelos 87.000 mortos pela Covid-19 no país”, completa.
Além disso, processar uma denúncia ao TPI é demorado. Primeiro, a ação passa por uma análise prévia, depois por uma comissão investigatória e, por fim, por um corpo deliberativo, que decide se o denunciado vira réu. A denúncia contra Bolsonaro feita em novembro ainda encontra-se no estágio de análise prévia e a lentidão deve aplicar-se, também, à nova.
“O primeiro julgamento em Haia demorou 10 anos para começar”, diz Silva. Nada impede que Bolsonaro cumpra seu mandato e ainda se reeleja antes que o processo, mesmo que aberto, tenha uma decisão.
Contudo, mesmo que a denúncia não resulte em uma condenação, não foi em vão, já que a imagem de Bolsonaro deverá ser afetada internacionalmente. “Os réus do Tribunal Penal Internacional são ditadores, genocidas, líderes que praticaram agressões com armas químicas, pessoas que extirparam etnias. Aos olhos do mundo, fica claro que o Brasil, ou pelo menos seu líder, está pouco preocupado com direitos humanos”, analisa Silva.
Para Cláudio Finkelstein, a denúncia também funciona como manifesto: “O apelo à Corte aumenta a percepção global do descontentamento dos brasileiros com a política nacional”, diz.
Em 1998, o Tribunal Penal Internacional foi criado por decisão de representantes de 120 países para julgar crimes de genocídio e contra a humanidade. Um dos processos já finalizados foi o de Thomas Lubanga Dyilo, condenado em 2012 – oito anos após a denúncia – por crimes de guerra na República Democrática do Congo, culpado de recrutar “crianças-soldados” nas Forças Patrióticas para a Libertação do Congo.
Outros casos de maior repercussão são o do ex-ditador líbio Muammar Kadafi, que teve sua prisão decretada por crimes contra a humanidade pela repressão aos protestos contra o seu governo em 2011, e do general servo-bósnio Dragomir Milosevic. O oficial, que comandou o cerco à cidade de Sarajevo durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), morreu aos 64 anos, antes do final de seu julgamento.