Estudo aponta poluição como um poderoso e invisível inimigo da humanidade
Realizada por universidades de prestígio, a pesquisa fala em 8,7 milhões de mortes em um só ano pelo problema
Elas são invisíveis a olho nu, esgueiram-se pelas vias respiratórias e matam em prestações. Nos casos mais graves, chegam aos pulmões das vítimas, provocando falta de ar e, por consequência, menos oxigenação dos órgãos, com resultados muitas vezes fatais. Seria a descrição do novo coronavírus? Poderia ser, mas, nesse caso, estamos falando de micropartículas de poluição atmosférica identificadas em um estudo conjunto realizado por universidades de reputação internacional: Harvard, Birmingham, Leicester e College London. Divulgada agora, a pesquisa revelou que em 2018, em razão da queima de combustíveis fósseis, 8,7 milhões de pessoas morreram, quase 20% de todas as mortes ocorridas naquele ano.
Para entender a gravidade da situação, é essencial mostrar como age o assassino. Grande parte da poluição provém da queima de carvão em usinas de energia, da gasolina em veículos, de produtos químicos na indústria e de incêndios florestais. Essas combustões produzem gases de efeito estufa que retêm a radiação solar na atmosfera. Consequências futuras são as mudanças climáticas, mas há um efeito muito mais premente na saúde pública: o processo libera partículas venenosas conhecidas como MP2.5 — a sigla antes dos números significa micropartícula. De diâmetro igual ou inferior a 2,5 micrômetros, elas são 100 vezes mais finas que um fio de cabelo e penetram nos pulmões, agravando problemas respiratórios como asma. Podem provocar câncer de pulmão, doenças coronárias, derrames, abortos e natimortos. A pesquisa também encontrou correlação entre altos níveis de poluição de longo prazo e mortes por Covid-19. Em outras palavras, pulmões minados pela poluição são presas fáceis do vírus.
A precisão do trabalho foi obtida graças a dados reais aplicados a um modelo 3D do globo terrestre, o que permitiu estudar de forma detalhada cada região. Os pesquisadores pegaram como ponto de partida as informações de emissões e meteorológicas de 2012, um ano que não teve a influência do El Niño, fenômeno que aquece o Oceano Pacífico, mexendo com o clima da Terra. A atualização para 2018 foi necessária para refletir uma queda de 44% na poluição por combustíveis fósseis registrada na China entre os dois períodos. A política chinesa de corte de emissões seria responsável por salvar 2,4 milhões de vidas em âmbito global, o que inclui 1,5 milhão de pessoas dentro de suas fronteiras. Apesar de ainda ser uma das nações mais poluídas e poluidoras do mundo, ela apresentou avanços notáveis em uma década — atalho para esperança de contenção do problema.
Há um nó, porém, ainda a ser desatado. O debate em torno da queima de combustíveis fósseis sempre se dá no contexto das emissões de gases para as mudanças climáticas. O impacto para a saúde de outros poluentes emitidos a reboque, no entanto, é negligenciado. “Esperamos que, ao quantificar as consequências da queima de combustíveis fósseis para a saúde, possamos enviar uma mensagem clara sobre os benefícios de uma transição para fontes alternativas de energia”, disse Joel Schwartz, professor de epidemiologia ambiental na Escola de Saúde Pública de Harvard e signatário do estudo.
Não há dúvida de que o tema é fundamental para os países em desenvolvimento, com populações gigantescas. De acordo com o Relatório Mundial de Qualidade do Ar, publicado pela IQAir, empresa suíça de tecnologia da qualidade do ar, das trinta cidades mais poluídas, 21 estão localizadas na Índia. Duas ficam na China. No Brasil, as capitais com pior performance são Rio Branco e São Paulo, e mesmo assim, felizmente, elas nem se aproximam da lista das 100 mais afetadas. Não se trata, portanto, de acender o sinal vermelho, ainda. A advogada Patrícia Iglecias, presidente da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, diz que a situação da capital paulista está bem equacionada em razão de políticas públicas de contenção de emissão de vários tipos de poluente, incluindo gases de efeito estufa e micropartículas. Patrícia destaca os controles impostos às indústrias e aos veículos. “Desde 2008, São Paulo não ultrapassa os limites de monóxido de carbono previstos pela Organização Mundial da Saúde”, diz ela.
Em outro estudo publicado no periódico The Lancet, que analisou dados climáticos de Brasil, China, Alemanha, Índia, Indonésia, Nigéria, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos, pesquisadores postulam que milhões de mortes serão evitadas até 2040 se esses países empregarem reais esforços para a redução do uso de combustíveis fósseis. Juntos, eles representam 50% da população mundial, mas produzem 70% das emissões de gases e micropartículas. Nessa toada, a eleição de Joe Biden nos EUA é uma possibilidade de pé no freio, ao avesso do que preconizava Trump. Em 2020, a comunidade científica celebra o surgimento de vacinas de alto índice de eficiência contra a Covid-19 — uma invenção que, de fato, merece celebração. Porém, por mais gratificantes que tenham sido esses esforços, é imperativo que a sociedade pare de ignorar outro inimigo invisível ceifador de vidas, insidioso, que está aí, pelos ares.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726