Quatro dias depois do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973, o Departamento de Estado americano iniciou conversas com o Itamaraty sobre o reconhecimento diplomático do governo do general Augusto Pinochet por ambos os países. O então embaixador dos Estados Unidos em Brasília, John H. Crimmens, foi instruído a reunir-se com o chanceler Mário Gibson Barbosa para tratar dessa questão e também sobre como lidar com vizinhos sul-americanos que haviam feito “pronunciamentos em alta voz” sobre a morte de Allende e o golpe militar.
As instruções constam do telegrama 184123, enviado em 15 de setembro de 1973 pelo vice-secretário de Estado, David Kenneth Rush, ao embaixador Crimmens. No texto, Rush assinala que os Estados Unidos “não querem dar ênfase a nenhum ato público de reconhecimento do novo governo do Chile” e que, apesar de não terem ainda iniciado contatos formais com Santiago, dispunham de “avenidas informais de comunicação com membros do novo governo”.
O Departamento de Estado assinala no telegrama “ser ainda muito cedo para avaliar a forma e a filosofia do novo regime”, que se desenvolveu como um dos mais drásticos e longevos governos autoritários na América do Sul nos anos 70. Pinochet aboliu o Estado de Direito e criou uma máquina de repressão que matou mais de 3.000 opositores e empurrou ao exílio 200.000 chilenos. Seu governo terminou apenas em 1990, depois de sua derrota em um referendo no qual a maioria dos chilenos preferiu o retorno à democracia.
“Enquanto ele (o novo governo chileno) conclama um esforço nacional de reconciliação, não se definiu ainda e pode levar algum tempo antes de começar a tratar da filosofia política e econômica. Não há evidência hoje que sugira que os militares vão abandonar o controle em futuro próximo”, diz o telegrama.
O Brasil e os Estados Unidos reconheceram o governo de Pinochet pouco depois e mantiveram uma ampla relação de cooperação com Santiago — em especial, nas áreas militar e de repressão interna. Gibson e o então secretário de Estado americano, Henry Kissinger, encontraram-se na semana seguinte, em Nova York, e puderam conversar mais sobre a cooperação de ambos os países com o governo de Pinochet e sobre a América Latina. As conversas constam de memorando enviado no dia 26 de setembro de 1973 para o Departamento de Estado.
Ambos os documentos fazem parte dos arquivos sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos entre 1969 e 1976, mantidos em confidencialidade por mais de quatro décadas. Em dezembro de 2015, foram liberados para consulta pública no portal do Escritório de História do Departamento de Estado, embora alguns trechos ainda continuem confidenciais. Trata-se de memorandos, documentos enviados por outras agências americanas e telegramas (a comunicação por escrito) entre Washington e sua embaixada em Brasília.
No memorando sobre a conversa em Nova York, o chanceler brasileiro e o embaixador do Brasil em Washington, João Augusto Araújo Castro, sublinharam a necessidade de maior cooperação do Brasil e dos Estados Unidos com o Chile. Kissinger deu seu apoio a uma cooperação, contanto que fosse “discreta”, e ironizou a queda do governo Allende. “Ele (Kissinger) disse que se tornou costumeiro que, quando um governo antiamericano é derrubado, nós tenhamos de nos desculpar por isso”, menciona o texto do memorando.
Os Estados Unidos já haviam enviado, naquele momento, suprimentos médicos emergenciais e poderiam oferecer assistência econômica, informou Kissinger. Por meio do Brasil, tinham feito chegar ao Chile um carregamento de capacetes e foguetes. Gibson perguntou a Kissinger se deveria contar aos chilenos que a carga viera dos Estados Unidos. A resposta foi “não”. “Isso poderia dar a entender que nós agimos por meio de vocês, e pensamos que seria melhor para nós lidarmos diretamente. Nós acreditamos que isso é melhor para vocês e para nós”, respondeu Kissinger.
Nas conversas, Kissinger reiterou que os Estados Unidos queriam “fazer mais na América Latina” e queria ouvir o ponto de vista e o conselho do Brasil sobre o assunto — algo que não teria pedido a nenhum outro país. Gibson disse que a ideia de criar uma política geral para a América Latina, como fora a Aliança para o Progresso no governo de John Kennedy, havia fracassado por causa das diferenças na região. Por mais eficiente que uma nova relação pudesse ser, disse Gibson, não substituiria a eficácia das conversas bilaterais.
“O secretário (de Estado) disse que compreendia. Ele disse que as nossas relações com o Brasil eram mais importantes e um assunto um tanto separado (dos demais na América Latina)”, menciona o texto.
Perón
Durante a conversa, Kissinger mostrou-se particularmente interessado na posição brasileira e na opinião pessoal de Gibson sobre a eleição de Juan Domingo Perón para seu segundo período como presidente da Argentina, tendo como vice sua terceira mulher, Isabel, mais conhecida como Isabelita. A saúde de Perón, que completara 77 anos, parecia precária demais, e a questão de sua sucessão já estava posta. Gibson disse a Kissinger que Perón não conseguiria suportar a tensão do governo e, como sofrera um ataque cardíaco, não completaria seu mandato.
“O ministro brasileiro disse que ‘em minha opinião´, a senhora Perón não deveria jamais suceder seu marido”, relata o memorando. Gibson teria apontado ainda duas possibilidades: outro líder peronista tomar o poder ou um novo golpe de Estado. Mas agregara que o Exército argentino estava “tímido”.
“Ele disse que o que vemos na Argentina é exatamente o contrário do que houve no Brasil. ‘Nós começamos com (João) Goulart’, ele disse, ‘e terminamos com o Exército. Na Argentina, eles começaram com o Exército e terminaram com um Goulart’”, diz o texto.
Gibson acertou na fragilidade da saúde de Perón, que faleceu dez meses depois dessa conversa, em julho de 1974. Mas foi contrariado, porque Isabel Perón tomou posse como presiddente da Argentina, e o mundo assistiu ao golpe militar contra o governo dela em 1976. O Exército, naquele momento, não estava mais tão tímido. A ditadura militar argentina sobreviveu até 1983 e deixou 30 000 desaparecidos políticos, segundo listas de grupos de direitos humanos.