EUA têm trabalho para convencer vizinhos a não esnobar Cúpula das Américas
A maior nação do planeta vai precisar distribuir muitos agrados para contornar o estouro da boiada abaixo do Rio Grande
Para quem se acostumou a ver os Estados Unidos mandando e desmandando no pedaço do planeta descoberto por Cristóvão Colombo, foi uma surpresa e tanto ver representantes americanos de alto nível cruzar o continente, cheios de rapapés, pedindo por favor aos presidentes que aceitassem o convite para participar da IX Cúpula das Américas, marcada para 6 a 10 de junho, em Los Angeles. Encontro que acontece a cada dois ou três anos (quatro agora, por causa da pandemia) e que pela primeira vez, desde o inaugural, em 1994, é sediado pelos Estados Unidos, esta cúpula não será como as outras por vários motivos, nenhum particularmente louvável.
Washington tem mais com que se preocupar, a começar pela guerra na Ucrânia, mas não quer perder a chance de 1) recalibrar seu poderio regional; 2) tratar com os vários governos, frente a frente, a espinhosa questão dos imigrantes ilegais; e 3) dar um chega para lá na China, sempre de olho nos vácuos de influência. Da sua parte, os países da região, cada um no seu quadrado e sem vestígio de unidade, se fazem de difíceis porque 1) se sentem desprestigiados (Donald Trump nem sequer deu as caras na cúpula anterior, no Peru); 2) por questões ideológicas situadas nos dois extremos do espectro, a maioria dos governos milita hoje no campo que não tem simpatia por Biden; e 3) não há indícios de favorecimento comercial no horizonte, ponto crucial para um aquecimento da relação com o gigante do Norte.
Jair Bolsonaro, que bate tambor para Trump e foi um dos últimos a cumprimentar Biden pela eleição, não estava muito disposto a ir, assoberbado que anda pela disputa eleitoral. Mas conversou com Chris Dodd, ex-senador democrata a quem a Casa Branca incumbiu da missão de convencer recalcitrantes, e, vencido pela perspectiva de uma reunião a dois e uma foto com o presidente americano, resolveu confirmar presença. O mesmo Dodd também foi encarregado de cooptar Alberto Fernández, da Argentina, que se fez de indeciso, mas aceitou ir. Antes deles, esteve com o maior encrenqueiro de todos, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, principal promotor do enrosco: ele afirma categoricamente que só aparece na cúpula se todos os 36 países das Américas forem convidados — e os Estados Unidos já anunciaram que não vão chamar Cuba, Nicarágua e Venezuela. “O México vai participar. Só eu que não vou, se não chamarem todos”, declarou AMLO. E ainda fez piada: “É a Cúpula das Américas ou a Cúpula dos Amigos da América (referindo-se aos Estados Unidos)?”.
Seu recado foi replicado por Bolívia, Guatemala, Honduras e Antígua e Barbuda, esta falando em nome da comunidade caribenha, o que ampliou a ameaça de uma cúpula esvaziada. Como reação, a vice-presidente Kamala Harris foi despachada para Guatemala, Honduras e México, os três países essenciais em qualquer esforço para conter as levas de imigrantes que continuam a cruzar a fronteira americana — ela é a indicada de Biden para cuidar do assunto, embora tenha pouco a apresentar até agora. A primeira-dama Jill Biden, acompanhada da filha Ashley, visitou Equador, Panamá e Costa Rica, para “enfatizar a importância da parceria com os Estados Unidos”, segundo comunicado oficial. O subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, passou a semana no Caribe, tentando conquistar corações e mentes.
A ausência de López Obrador seria um golpe particularmente duro — prova disso é que não só Harris e Dodd, como também o embaixador americano na Cidade do México, Ken Salazar, estiveram várias vezes no palácio presidencial nos últimos tempos. Além de o México ser o maior parceiro comercial dos Estados Unidos (posição que retomou em fevereiro, destronando o Canadá), na fronteira compartilhada de mais de 3 100 quilômetros um recorde de 1,6 milhão de imigrantes tentou ingressar no eldorado americano em 2021, quatro vezes mais do que no ano anterior. Imigração deve ser um dos temas primordiais da Cúpula das Américas e a ausência de López Obrador dificulta ainda mais a costura de qualquer tipo de acordo. “A recusa a comparecer ao encontro dá vantagem a López Obrador em duas frentes: na interna, por agradar a sua base eleitoral, e na externa, por lhe oferecer condições de exigir mais dos Estados Unidos para colaborar na questão migratória”, diz Todd Eisenstadt, professor do Departamento de Governo da American University. O México já pôs em prática várias medidas para conter o fluxo ao longo da fronteira, inclusive montando vastos acampamentos para esperançosos que aguardam sua vez, e as relações entre Biden e o esquerdista AMLO são “cordiais”, mas eles estão longe de ser amigos.
Estreitos laços históricos e econômicos, emaranhados com interesses comerciais e ideológicos, fizeram com que, durante décadas, os Estados Unidos decidissem os rumos da América Latina. Não mais. “Estamos em um ambiente global radicalmente diferente, com consequências de longo prazo para os Estados Unidos devido à falta de união no continente”, observa P. Michael McKinley, ex-embaixador americano no Peru, Colômbia e Brasil. Contribui para a mudança a crescente presença da China — sempre ela — na região. Em 2021, o volume do comércio da América Latina com os chineses chegou a 400 bilhões de dólares. Em exportações latino-americanas, o salto foi de 35% para a China e de 19% para os Estados Unidos, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Dos 36 países do continente americano (incluindo aí Estados Unidos e Canadá), 21 se envolveram na chamada Nova Rota da Seda, megaprojeto de infraestrutura de Xi Jinping que prevê um investimento de 5 trilhões de dólares para conectar os continentes por rotas marítimas e terrestres. A maior nação do planeta vai precisar distribuir muitos agrados para contornar o estouro da boiada abaixo do Rio Grande.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792