Ah, as voltas que a política dá. No segundo turno da eleição presidencial na França, as três figuras de maior destaque estavam na seguinte situação: Emmanuel Macron, 44 anos, o presidente centrista em busca de reeleição e precisando cooptar apoios, cortejava com mimos e rapapés o líder da esquerda, Jean-Luc Mélenchon, que não gosta dele mas tapou o nariz e recomendou o voto útil, com o intuito de cortar as asas de Marine Le Pen, 53 anos, a musa da extrema direita. Resultado: Macron ganhou, com respeitáveis 59% dos votos, e Le Pen teve de engolir a segunda derrota para ele (já perdera em 2017). Parcos dois meses depois, veio a votação para a Assembleia Nacional e tudo mudou: os dois extremos do espectro, à esquerda e à direita, pulam de alegria com suas conquistas, enquanto Macron amarga a perda da maioria absoluta e a necessidade — dolorosa para quem já se comparou a Júpiter — de ter de costurar alianças para poder governar.
A coligação de Macron, depois de passar semanas desancando sem piedade os candidatos da esquerda transmutados em rivais, saiu das urnas com a maior bancada, de 245 cadeiras, mas muito menos do que as 350 de cinco anos atrás e abaixo das 289 que formam a ambicionada maioria absoluta. Mélenchon, 70 anos, velha raposa da esquerda radical, operou o milagre de unir sua turma aos verdes, socialistas e comunistas em uma ratatouille improvável chamada Nupes (Nova União Popular Ecológica e Social) e conquistou 131 cadeiras, tornando-se a segunda maior força da casa. Le Pen, por sua vez, passou de derrotada a triunfante: seu partido, o Reagrupamento Nacional, que credita todos os males da França aos imigrantes e quer tirar o país da União Europeia, saltou de oito para 89 deputados. “Estamos escrevendo um novo capítulo na história de nossa família política”, celebrou. Nessa dança de cadeiras, o dono do título de maior fiasco eleitoral pode, no fim das contas, sair ganhando: o Republicanos de Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, que durante décadas dividiu o poder com os socialistas, minguou de 112 para 65 deputados, mas virou o fiel da balança do enfraquecido Macron.
Ciente de seu peso menor na balança do poder, o presidente convidou todos os líderes de blocos partidários para uma conversa no Palácio do Eliseu (Mélenchon não apareceu; Le Pen foi e posou, toda sorridente). A nova divisão da Assembleia tem tudo para dar dor de cabeça ao governo, visto que, na campanha, tanto la gauche quanto la droite se esmeraram em defender tudo o que Macron ataca e atacar tudo o que ele defende. Um de seus projetos mais caros é elevar gradativamente a idade da aposentadoria de 62 para 65 anos (Mélenchon, o antitudo, quer diminuir para 60) — se não conseguiu quando tinha maioria, que dirá agora.
Para suavizar o impacto da inflação de 5,1% no bolso, alta para os padrões franceses e o maior torpedo a minar sua popularidade, o presidente oferece uma espécie de Bolsa Família de 100 euros e suspensão temporária de alguns impostos sobre gás e eletricidade, enquanto Le Pen, transformada em feroz guardiã dos gastos públicos, acena com um acordo paralelo com a Rússia e a reabertura de seus gasodutos e oleodutos para a França. A deputada, diga-se, é admiradora de Vladimir Putin, a quem deve favores: um banco russo socorreu seu partido com um empréstimo de 9 milhões de euros em momento de necessidade. A se julgar pelo que prometeram em campanha, nem o Reagrupamento nem a Nupes vão dar sossego a Macron no novo Parlamento. Em princípio, os republicanos também não. “Somos muito claros: fazemos oposição a Macron e assim permaneceremos”, bradou o atual líder, Christian Jacob. Mas nesse caso prevê-se que o pragmatismo fale mais alto.
Também está em jogo a conformação do governo. Além de ministras e líderes de bancada que não se elegeram e já foram avisados que serão trocados, a própria primeira-ministra, Élisabeth Borne, escolhida por tender para a esquerda e ter chance de agradar a esse eleitorado, deve sair agora que o bloco se consolidou como inimigo e sua utilidade murchou. Macron, arrogante promotor de medidas impostas de cima para baixo, tem pela frente um longo exercício de autocontemplação para rever suas atitudes e pôr ordem na casa. Os franceses, enquanto isso, descrentes de tudo (a abstenção foi de 53%), vão precisar conviver com o dilema nacional de pender para a direita mas não suportar os desatinos de Le Pen, desgostar da esquerda comandada pelo radical Mélenchon e, sem outra opção, optar pelo centro conduzido pelo universalmente antipático Macron. Convenhamos: não há joie de vivre que resista.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795