Fila, cadastro e imposto: o comércio da maconha recreativa na Califórnia
Entra em vigor no Estado mais populoso dos EUA legislação que autoriza venda do produto para maiores de 21 anos
Desde o dia 1º de janeiro, é possível comprar maconha para fins recreativos na Califórnia. Basta apresentar um documento provando ser maior de 21 anos – passaporte vale – e procurar uma das lojas autorizadas. O único problema, por enquanto, são as filas. Apenas quatro estabelecimentos têm licença para vender maconha recreativa (não confundir com o comércio do produto para uso medicinal) em todo o condado de Los Angeles, todos na cidade de West Hollywood. A reportagem de VEJA contou mais de 60 pessoas do lado de fora numa visita à MedMen no fim da tarde de quarta-feira, 3. Funcionários distribuíam garrafas de água, apesar da temperatura amena. “O volume de clientes aumentou três vezes, e a média de gasto por cliente subiu 30%”, diz Daniel Yi, vice-presidente de comunicação corporativa da MedMen, que tem seis lojas na Califórnia, quatro em Nova York e bases de cultivo em Nevada, Califórnia e Nova York. Yi é brasileiro, nascido em São Paulo, e está nos Estados Unidos há cerca de três décadas. Um ano e meio atrás se juntou à empresa, depois de atuar como jornalista e no departamento de comunicações do Porto de Long Beach.
A poucas quadras da MedMen, a Alternative Herbal Health Services tinha uma fila menor do lado de fora, mas um fluxo constante de consumidores. “Estamos vendo muita empolgação agora, com todo o mundo querendo fazer parte deste momento”, diz a proprietária, Dina Browner, conhecida como Dra. Dina e consultora da série Disjointed, da Netflix. O dispensário, que costumava atender cerca de cem pessoas por dia, tem recebido 500 desde o dia 1º. “Muita gente vinha, até do Brasil, perguntando se podia entrar na loja, e tínhamos de dizer que não, porque apenas residentes da Califórnia podiam comprar. Agora todos os nossos amigos do mundo inteiro finalmente podem vir e consumir. É maravilhoso.”
O uso da maconha medicinal já era permitido na Califórnia desde a aprovação da Proposta 215 por voto popular em 1996, mas apenas para residentes no Estado. Em novembro do ano passado, 57,13% votaram “sim” à Proposta 64, que permite o uso, o cultivo pessoal e também a venda legal de maconha, com a devida cobrança de impostos. Outros Estados americanos já tinham legalizado a maconha, caso do Colorado, Washington, Oregon e Nevada.
Tirando a fila, que deve diminuir assim que as 200 licenças pendentes da cidade de Los Angeles começarem a sair, o processo é bem simples. Na MedMen, um segurança checa um documento para conferir se o cliente é maior de 21 anos. Depois, é feito um cadastro para facilitar a negociação. O usuário pode então passear pelo espaço, que lembra muito uma loja da Apple. Amostras das mercadorias, de cremes a comestíveis, passando por óleos, cigarros já enrolados e a erva em si, estão dispostos em vitrines, acompanhados de iPads com informações e preço. No caso da erva, amostras ficam em recipientes transparentes com fundos coloridos que indicam os efeitos – para relaxamento noturno, para euforia, para foco e criatividade, por exemplo. É possível abrir o recipiente para sentir o aroma. Os preços de 1 grama (o máximo permitido é 28 gramas) variam entre US$ 10 e US$ 20, mais o imposto estadual de 9% e uma taxa específica de 15%. Depois de escolhido o produto, o pedido é entregue num balcão, em sacolas vermelhas que não deixam ver o que está dentro. O pagamento pode ser feito em dinheiro ou cartão. Mas cuidado: não é permitido fumar em público (a não ser em locais com licença específica) nem dirigir depois de fumar. Também não é recomendável levar no avião para fora da Califórnia. Uma compradora de 21 anos de idade disse que há desvantagens na venda legal. “Os impostos, por exemplo.” Mas ela não pretende voltar a comprar ilegalmente. Daniel Yi diz que os impostos são parte de qualquer negócio legal. “Todo produto legal consumido numa sociedade civilizada paga imposto. A maconha não é diferente. Antes se comprava de um traficante, sem saber de onde a droga vinha e se ele vendia para crianças, por exemplo. Agora as pessoas podem ir comprar numa loja, que precisa de licença do governo. Claro que podemos discutir se o imposto é alto. Essa é uma discussão sobre legislação. Mas você pode mudar a legislação, não precisa passar por cima da lei.”
Yi acredita que, apesar de outros Estados já terem legalizado a maconha, a Califórnia tem peso para influenciar decisões em nível federal, em que a maconha é colocada no mesmo patamar da heroína, e até internacional. “A Califórnia é o Estado mais populoso e a sexta maior economia do mundo. Pense bem: no Estado que popularizou o sushi e o yoga, adultos agora podem comprar maconha”, afirmou Yi. A guerra às drogas deve ser reconsiderada, disse Yi. “Conforme a maconha se torna legal, as pessoas começam a repensar esses conceitos e ver que a maconha não é mais perigosa que a cocaína, nem se iguala à heroína. É uma droga, verdade, mas o álcool também. É preciso haver regulamentação: crianças não podem consumir e não se pode dirigir depois de usar. Fora isso, os impostos podem ser investidos em benefícios da população em geral.”
A nascente indústria da maconha acompanha de perto a decisão, anunciada ontem, do secretário de Justiça americano, o ultraconservador Jeff Sessions, revertendo três memorandos do governo de Barack Obama que definiam uma política de não-interferência nas leis estaduais referentes ao uso de maconha. “Não estamos com medo, mas estamos prestando atenção”, disse Yi. “Sempre tentamos olhar o panorama. Não deveria surpreender que o secretário de um governo conservador mude as regras de um governo liberal. Por enquanto, na prática, nada mudou. Mas certamente causa incerteza.” Ele duvida que o governo federal entre numa briga com os Estados. Estima-se que os US$ 2 bilhões arrecadados anualmente com a maconha medicinal passem para US$ 7 bilhões com a liberação de seu comércio para fins recreativos.