Na chuvosa manhã do último sábado, 20, um Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira (FAB) fez valer seus quatro motores para levantar voo de Boa Vista, em Roraima, rumo a Florianópolis, distante 5 000 quilômetros. Desenvolvida em 1951 nos EUA, a aeronave foi projetada para atender a fins militares. No entanto, a decolagem naquele dia de pista molhada nada tinha a ver com guerra. A missão era de paz: levar 63 refugiados venezuelanos, entre eles vinte crianças, para Santa Catarina, onde passariam a residir com familiares ou em abrigos. Um dos passageiros era Carlos Montaño, de 28 anos: “Estou com medo por ser a primeira vez que voo. E por não ter ideia do que nos espera”, admitiu ele. Carlos, a mulher, o filho e outros quatro parentes haviam vivido dois meses na rodoviária de Boa Vista, até serem atraídos pela Operação Acolhida, capitaneada pelas Forças Armadas desde março de 2018, junto a órgãos do governo federal e agências da ONU, com o objetivo de providenciar moradia, alimentação e trabalho aos que fogem da ditadura de Nicolás Maduro — e da miséria que atinge 90% da população da Venezuela.
Em cinco semanas de junho e julho, a reportagem de VEJA conversou com mais de oitenta venezuelanos que atravessaram a fronteira com o Brasil para escapar da crise que assola seu país. O que essas famílias vivem é uma autêntica odisseia. O trajeto é feito sempre de forma improvisada. Nos primeiros trechos, o usual é recorrer a caronas ou a ônibus com passagens mais baratas. Contudo, ao chegarem perto do limite com Roraima, os imigrantes muitas vezes seguem a pé — os motoristas hesitam em cruzar para o lado brasileiro, a não ser quando são bem pagos para isso. Já foi pior. Entre fevereiro e maio, quando a fronteira do lado venezuelano esteve fechada por determinação do governo Maduro, muitas famílias entraram no Brasil pela mata. Para tanto, recorriam aos compatriotas indígenas, que conhecem melhor a região.
No voo do Hércules da FAB, ninguém passou por essa situação. Entretido na leitura de uma obra didática sobre o Brasil, o neurocirurgião Diover Gonzalez, de 59 anos, apertava embaixo do braço o seu diploma — emoldurado. Ao seu lado sentaram o filho, advogado, e a mulher, enfermeira. “A saúde pública em Boa Vista é péssima”, disse Gonzalez. “Mesmo assim, eu e minha companheira não conseguimos nenhum tipo de trabalho, pois nossas graduações não foram consideradas válidas.” Na capital roraimense, eles viveram com economias que haviam reservado na Venezuela justamente para fugir. A poupança durou apenas dois meses. O médico recorreu então à Operação Acolhida, a fim de conseguir ajuda para chegar com a família a Santa Catarina, onde deve morar na residência de outro filho, que se estabeleceu no país meses atrás.
Na semana anterior, VEJA flagrara o início da aventura de outra família em terras brasileiras. Ricardo Moreno, de 30 anos, atravessou a fronteira a pé, com a mulher, Roselis Figueira, de 33, e o filho Miguel, de apenas 9 anos. Sob temperatura de 30 graus, eles caminharam pela faixa que separa o município venezuelano de Santa Elena de Uiarén e Pacaraima (leia a história dos Moreno, assim como a de outros refugiados, nos quadros ao longo desta reportagem). Perto dele, um imigrante, com uma criança no colo, advertia um menino que seguia ao seu lado: “Você não pode chorar. Tem de caminhar como um homem forte”.
Todos os dias, cerca de 250 venezuelanos buscam exílio no Brasil. Trata-se do maior fluxo migratório, por meio de fronteiras terrestres, já recebido pelo país. Apenas em 2018, aproximadamente 90 000 pessoas fugiram do regime de Maduro em busca de uma nova vida em solo brasileiro. Desde o agravamento da crise por lá, em 2015, mais de 170 000 pessoas se retiraram da Venezuela tendo o Brasil como destino. No ano passado, o país bolivariano se tornou líder de um ranking vergonhoso: ultrapassou Afeganistão, Síria e Iraque e se transformou na nação de onde saiu a maior quantidade de exilados do planeta. Só em 2018, 341 800 venezuelanos solicitaram asilo em algum lugar do mundo. Com isso, dois países latino-americanos estrearam na lista global dos que mais acolhem o fluxo de solicitações de indivíduos que deixam sua terra de origem: o Peru, em segundo lugar (atrás dos Estados Unidos), e o Brasil, em sexto (leia o quadro mais abaixo).
A situação, de fato, é dramática. Desde 2012 mais que dobrou o número de expatriados em todo o mundo. Hoje, há 25,9 milhões de indivíduos reconhecidos oficialmente pela ONU com o status de refugiados. O país que mais recebeu solicitações em 2018, os Estados Unidos, não tem sido nada caloroso com os imigrantes. Não é de estranhar, afinal o presidente Donald Trump se elegeu justamente com a promessa de construir um muro na fronteira com o México para impedir não só a migração de cidadãos daquela nação como também de qualquer pessoa que faça de seu território a porta de entrada para a realização do sonho americano. Em junho, uma fotografia serviu de alerta para a tragédia decorrente dos caprichos de Trump: ela mostrava dois refugiados de El Salvador, o cozinheiro Óscar Martínez Ramírez, de 25 anos, e sua filha, de quase 2, afogados no lado mexicano do Rio Grande, quando tentavam chegar aos Estados Unidos.
De acordo com o Acnur, órgão da ONU responsável por oferecer ajuda aos refugiados, há dois principais motivos por trás do recente aumento do número daqueles que fogem de sua terra-natal. Primeiro, a eclosão da guerra civil na Síria, que, em seu ápice, em 2015, levou 409 300 cidadãos a procurar asilo. Naquele ano, outra imagem chocou o planeta: a do sírio Alan Kurdi, de 3 anos, que morreu afogado em uma praia na Turquia enquanto sua família buscava um destino. A segunda razão apontada pelas Nações Unidas para o avanço no número de refugiados é justamente o caos na Venezuela. Em junho deste ano, a ONU divulgou que os venezuelanos alcançaram o topo do tristíssimo ranking de novas solicitações de refúgio: 12% da população, de 32 milhões de habitantes, submetida ao regime bolivariano já deixou o país.
A situação da Venezuela está diretamente ligada à derrocada de uma proposta de esquerda, calcada no populismo e na irresponsabilidade econômica. O nome do grande vilão, sem dúvida, é Hugo Chávez. Governante de 1999 a 2013, ele inaugurou com seu jeitão histriônico o fracassado bolivarianismo. Após sua morte, assumiu o comando o vice-presidente Nicolás Maduro, uma espécie de clone do antecessor nos trejeitos e na falta de bom-senso. Dono da maior reserva de petróleo do mundo, o país se manteve durante décadas, e de forma artificial, à base da commodity. Quando o preço do petróleo caiu — em 2014 seu valor diminuiu 50% —, a fantasia acabou. Resultado: hiperinflação (hoje em 10 000 000%) e a falta de acesso a alimentos e medicamentos. Depois de uma série de protestos contra o regime, o governo instituiu uma Assembleia Constituinte em 2017 para assumir as funções da Assembleia Nacional, de maioria da oposição. O desdobramento dessa iniciativa agravou a crise: o ditador ganhou ainda mais poderes. Em meio ao caos de 2018, o então deputado Juan Guaidó se tornou líder da oposição. Em janeiro deste ano, ele se autoproclamou presidente da Venezuela. Donald Trump e o presidente Jair Bolsonaro, além de outros líderes ao redor do globo, declararam apoio ao insurgente. De nada adiantou. Maduro continua no poder até hoje.
Destruída pelo governo autoritário, a Venezuela sofre. O salário mínimo por lá é de 8 dólares mensais (o equivalente a 32 reais). É o suficiente para comprar 1 quilo de frango, ou um pedaço de queijo. Mas não os dois. Aqueles com menor poder aquisitivo têm a fome como o principal motivo para migrar. “Vi crianças morrendo de desnutrição”, disse Arisnelis Castañeda, de 28 anos, mãe solteira de cinco filhos, que pediu refúgio ao Brasil. Tal situação, porém, afeta a todos por igual. Não faltam razões para os venezuelanos de melhor condição financeira, representantes da classe média, também desejarem deixar seu país. “Nosso filho de 4 anos quase morreu de uma infecção pulmonar. Arcamos com um preço absurdo por um antibiótico”, relatou a VEJA a pedagoga Malvis Gutierrez, de 41 anos, que hoje mora com a família em Dourados (MS). Malvis, que foi encaminhada à cidade pela ação do bilionário Carlos Wizard Martins (veja o quadro), recomeçou a vida vendendo salgadinhos, fez limpeza de salão de festas e hoje é executiva de vendas da Avon. Junto com o marido, Octavio, de 39 anos, mora numa casa alugada de dois dormitórios e gosta de comer dumplings, que ela mesma prepara na sua cozinha equipada com liquidificador e micro-ondas. Seu sonho, já realizado, era comprar uma máquina de lavar roupas. Octavio trabalha na Seara, empresa de carnes que empregou 420 venezuelanos em Dourados.
É de destacar até aqui a postura dos militares brasileiros na recepção dessas pessoas — desde o momento em que elas cruzam a fronteira até seu estabelecimento em algumas cidades do interior. Depois de uma triagem, os refugiados recebem doze vacinas (tríplice viral, contra febre amarela, influenza e outras) e documentação completa — CPF e carteira de trabalho. Em seguida, são encaminhados para abrigos. Crianças, mulheres e pessoas com necessidades especiais têm prioridade. Todos os que querem morar no Brasil são cadastrados. Nesse momento, o Exército atua como uma espécie de RH: tira foto, prepara o currículo e registra as habilidades de cada um. Empresas são sondadas para saber se estão precisando de mão de obra. A espera, porém, pode levar alguns meses. “A ação está sendo reconhecida internacionalmente”, atesta o porta-voz do Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho.
Por melhor que o governo brasileiro faça, trata-se, contudo, de uma solução provisória. A situação na Venezuela é insustentável — e as pessoas vão continuar a fugir de lá. “É preciso que se chegue quanto antes a um acordo entre os dois lados que brigam pelo poder na Venezuela”, alerta o sociólogo americano David Smilde, membro sênior do Escritório de Washington para a América Latina. Lamentavelmente, Maduro ainda resiste. Ao Brasil, cabe a tarefa de continuar servindo de porto seguro para aqueles que pedem ajuda, da melhor forma possível. É um dever humanitário e nos engrandece como nação. “Precisamos do apoio da sociedade civil para receber de forma digna os venezuelanos”, conclama o general Eduardo Pazuello, coordenador da Operação Acolhida. Até o momento, em torno de 15 000 desses imigrantes já foram transferidos para cidades brasileiras. Mas outros 16 000 ainda aguardam, com alguma esperança, uma chance para recomeçar a vida.
“Vi crianças morrendo de desnutrição. Quando perdi o emprego de vendedora de roupas, achei que minha família passaria por drama igual. Vim ao Brasil por ter ouvido que aqui não faltava comida.”
Arisnelis Castañeda, 28 anos, mãe solteira de cinco filhos
Há um mês no abrigo BV8, em Pacaraima, no norte de Roraima, ela saiu com os filhos, com idade entre 2 meses e 10 anos, da cidade venezuelana de San Félix. O marido a abandonou com as crianças. O primeiro trecho da viagem foi feito de ônibus. A partir de Santa Elena, ainda na Venezuela, indígenas ajudaram o grupo a atravessar a fronteira brasileira.
“Buscamos um futuro para nossos filhos.”
Roselis Figueira, de 33 anos, com o marido, Ricardo Moreno, de 30, e o filho Miguel, de 9
A foto registra o momento exato em que a família cruzou a fronteira entre a Venezuela e o Brasil, na cidade de Pacaraima, Roraima. Foi às 10 da manhã do dia 12 de julho. O casal de ex-comerciantes de roupas em Maturín, no Estado de Monagas, afirma que não tinha mais renda para alimentar os filhos. Depois de uma jornada de doze horas de ônibus e carona de carro, eles encararam o quilômetro final a pé. O sonho agora é mudar-se para a capital, Boa Vista.
“Fui o primeiro ENTRE MEUS PARENTES a sair da Venezuela. Agora comecei a trazer outros.”
Luis Gomez, de 27 anos
Chegou há dois anos a Boa Vista. Sobreviveu fazendo “bicos” de pintor e ajudante de pedreiro. Com os ganhos, trouxe a mãe e o irmão mais novo para morar com ele em uma casa alugada. Nove meses atrás, deixou a família para residir no abrigo Santa Tereza, destinado a homens solteiros, onde espera achar oportunidades de emprego fixo em alguma cidade do interior. Após conseguir trabalho, quer ter todos os Gomez a seu lado, no Brasil.
“Fiquei desesperado quando minha filha nasceu e não pude estar com minha mulher. Agora vamos reconstruir a vida juntos.”
Luis Hernandez, de 29 anos
“Ela é tão delicada”, disse Hernandez, lágrimas nos olhos, ao conhecer a filha de 1 mês de vida, em Dourados (MS), após três meses separado da família. Ruselis, de 27, e os dois filhos mais velhos, de 3 e 6, permaneceram em Boa Vista, onde estavam morando em um abrigo, quando Hernandez foi contratado por um frigorífico. Depois de ele economizar algum dinheiro, a família veio ao seu encontro. “Não há realmente futuro digno em meu país”, lamenta.
“Viemos só com a roupa do corpo.”
Anthony Allen, de 26 anos, o primeiro de uma família de doze pessoas a fugir em direção ao Brasil
Na Venezuela, Allen via como única opção de sobrevivência entrar para o crime. Por isso, resolveu emigrar. Em Boa Vista, dormiu duas semanas e meia na rua. Por meio do programa governamental Operação Acolhida, conseguiu emprego em um frigorífico em Dourados (MS). Após se estabelecer, vieram ao seu encontro a esposa, Sairi, de 23 anos, com os três filhos, além da cunhada, Luxmeris, de 29, com o marido, Henry Soledad, de 36, e suas cinco crianças.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646