Greve geral é primeira demonstração de força da oposição contra Milei
O próprio presidente avisa: vai ficar pior. Resta saber quanta dor os argentinos estão dispostos a tolerar
Quando ficou claro para Daniela Diaz, 34 anos, supervisora de vendas de Buenos Aires, que o programa do novo presidente da Argentina, Javier Milei, provocaria uma disparada da inflação e recessão, ela fez o que pôde para proteger seu poder de compra: estocou no freezer de casa carne suficiente para três meses, cortou o lazer e fez as contas para manter a filha de 9 anos em um colégio particular. Passados menos de dois meses, ela teme que suas providências tenham pouco efeito diante do furacão econômico que sacode o país. “Milei prometeu que a casta privilegiada pagaria pelo ajuste. Mas é a classe média quem sofre mais”, diz Daniela, que cogita procurar um emprego extra para dar conta das despesas. O empobrecimento geral (que, justiça seja feita, não é obra de Milei) é o principal combustível da greve que afetou o país na quarta-feira 24 e levou milhares às ruas, reeditando as grandes manifestações típicas do peronismo.
Convocado pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), o mais poderoso sindicato argentino, e com adesão de outras entidades, o protesto é a primeira demonstração de força da oposição contra o presidente que, empossado em dezembro, vem empreendendo um profundo arrocho com o propósito de tirar a economia da UTI. “Na história recente da América Latina, só a Venezuela enfrentou crise tão avassaladora”, diz Lívio Ribeiro, economista sócio da BRCG Consultoria e pesquisador associado do FGV Ibre. Mesmo com maciças barreiras policiais de prontidão, os manifestantes lotaram a praça em frente ao Congresso em Buenos Aires e as ruas das principais cidades, amparados por um habeas corpus preventivo desautorizando o uso de parte das medidas de repressão a protestos adotadas pela nova ministra da Segurança, Patricia Bullrich. A CGT calculou em 600 000 a multidão na capital (80 000 segundo a polícia, 40 000 segundo o governo) e 1,5 milhão em todo o país. Parte do comércio fechou, o tráfego aéreo foi suspenso, bancos e correios abriram meio período e os transportes pararam.
Pressionado, Milei precisou adiar para a próxima semana o início da votação no plenário da Câmara de Deputados do gigantesco pacote de leis com que pretende virar de cabeça para baixo as instituições, dinamitando a muralha de subsídios, salvaguardas e assistência social erguida durante meio século de peronismo e instalando no lugar seu exato oposto: uma economia em que cada um cuida de si, com mínimos controles. Antes de chegar ao plenário, a chamada Lei Ómnibus (“para todos”, em latim, assim batizada pela diversidade de temas, mas que no Brasil ganhou o apelido de Lei Ônibus) precisava passar pelo crivo de comissões partidárias, o que exigiu muitas horas de discussão, visto que o partido do presidente só tem 39 dos 257 deputados. Para obter o apoio de setores do PRO, do ex-presidente Mauricio Macri, e da União Cívica Radical, e a maioria nas comissões, o governo recuou da posição de não negociar nada, atentou para “erros” e “inquietudes” e ajustou seu pacote de 664 propostas, retirando 141 e alterando outras.
Entre os tópicos modificados está o prazo de vigência da Lei de Emergência que dá poderes quase ilimitados ao Executivo, reduzido de quatro para um ano, prorrogável mediante aprovação do Congresso. Também foi adiada por tempo indefinido a privatização da empresa petrolífera YPF e a perda da maioria acionária em outras três estatais (esta, a inspiração do mote dos protestos: “A pátria não se vende”). Uma tesourada nas aposentadorias e mexidas no sistema eleitoral estão entre os artigos deixados para mais tarde. Agora, a Casa Rosada pressiona para que os 523 projetos de lei sejam votados a toque de caixa até o fim de janeiro. “Milei usa a legitimidade que conseguiu nas urnas para colocar de pé, o mais rápido possível, seu programa de governo”, diz o economista Antonio Carlos Alves dos Santos, da PUC-SP.
Determinado a “refundar a república”, o presidente “anarcocapitalista” deu início ao mais amplo choque de liberalismo já visto na Argentina (ou em qualquer parte do mundo). Em dezembro, seu ministro da Economia, Luis Caputo, determinou em decreto o corte dos gastos públicos em 3% do PIB. Também liberou o preço dos alimentos e tarifas, desvalorizou o peso em 54%, cortou subsídios, eliminou nove dos dezoito ministérios, liberou a privatização de estatais e flexibilizou as leis de trabalho. No papel, trata-se de um pacote com iniciativas responsáveis e necessárias. De imediato, porém, as medidas produziram um tsunâmi inflacionário: só em dezembro, o custo de vida subiu 25%, acumulando estonteantes 211% no ano, a pior marca desde 1991. No restaurante do empresário brasileiro Roberto Menezes, no centro de Buenos Aires, os únicos clientes servidos desde o início da presidência de Milei são turistas. “Sem pesos no bolso, os argentinos sumiram”, lamenta Menezes.
Pontos do decreto vêm sendo alvo de contestação na Justiça, algumas já acatadas. Aprovando no Congresso a Lei Ómnibus, que inclui aquele pacote e muito mais, o governo fica livre dos entraves jurídicos e pode seguir em frente com seu terremoto libertário. A estratégia de atacar em múltiplas frentes simultaneamente e comprar briga com amplos setores da sociedade, com pouca ou nenhuma negociação, é premeditada — diante do histórico argentino de descarte de governantes impopulares, as melhores chances de Milei estão no tudo ou nada ao mesmo tempo agora, amparado nos 56% de votos que obteve (sua aprovação, por sinal, subiu para 58%). Mas é também uma tática temerária, sujeita a torpedos lançados de diversas frentes, a maioria delas sérias e outras francamente interesseiras. Médicos questionam a nova exigência de prescrição preferencial de medicamentos genéricos. Clubes de futebol resistem a ser transformados em sociedades anônimas, um projeto de Milei para atrair “árabes endinheirados”. Advogados se rebelam contra a facilitação dos processos de divórcio, que dispensa sua atuação. A liberação geral dos preços, por seu lado, estimula a perda de confiança no peso, que já não era grande. “Se a população entra em pânico e corre para se livrar da moeda, instala-se o cenário para a hiperinflação”, observa Ruy Santacruz, especialista em economia industrial da Universidade Federal Fluminense.
O presidente profetiza que seu receituário ultraliberal trará de volta a estabilidade de preços e a confiança perdida, com ganhos de produtividade, emprego e renda. O ciclo virtuoso, promete, começa em doze meses, com algum alívio na carestia já a partir de abril. Por enquanto, ele conseguiu renegociar o acordo com o Fundo Monetário Internacional, garantindo a liberação de 4,7 bilhões de dólares ao país, e arrebatou elogios de figurões do capitalismo na passagem pelo Fórum Econômico de Davos. A grande interrogação é saber por quanto tempo a população aguenta o tranco — e a greve geral de quarta-feira mostrou que os descontentes pretendem reagir. Na última tentativa de ajuste radical na Argentina, em 2001, a penúria fez explodir os protestos e derrubou o presidente Fernando de la Rúa. Milei promete seguir caminho diferente, mantendo programas sociais e auxílio aos mais pobres. Enquanto isso, em uma rua central de Buenos Aires, o camelô Gustavo Salvatierra, 49 anos, faz todo tipo de bico para se sustentar: vende roupas, conserta encanamento, cuida de fiação. “Eu me viro como posso, mas está cada dia mais difícil”, lamenta. O próprio Milei avisa: vai ficar pior. Resta saber quanta dor os argentinos estão dispostos a tolerar.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877