A resistência feroz das Forças ucranianas no campo de batalha, capaz de deter o avanço dos invasores russos, contou, desde o dia 1º, com a colaboração dos aliados europeus e americanos que integram a Otan, a aliança militar ocidental, que antes mesmo de o conflito explodir, há um ano, já estocavam armamentos e executavam treinamento na Ucrânia. Em matéria de poder de fogo, porém, a seleção do equipamento bélico a ser doado se deu a conta-gotas, cuidado justificado pela preocupação de Europa e Estados Unidos em não passar a impressão de estarem em guerra com a Rússia. As primeiras remessas, largamente defensivas, envolveram mísseis antitanques e antiaéreos. Seguiram-se sistemas de artilharia com foguetes de precisão, mas de alcance limitado. Agora, atendendo a insistentes pedidos do presidente Volodymyr Zelensky, a cooperação muda de figura e aponta diretamente para as tropas invasoras, com a entrada em cena de poderosos tanques de guerra.
O primeiro a seguir essa trilha foi o Reino Unido, com o compromisso de despachar um punhado de seus Challenger 2 para o campo de batalha. Depois de muito hesitar em se lançar em um conflito armado (uma espécie de tabu no país que detonou duas guerras mundiais), foi a vez de a Alemanha concordar em enviar para a Ucrânia seus Leopard 2, os mais cobiçados por unir praticidade e alta tecnologia, e liberar outros países a fazer o mesmo com os modelos de sua propriedade. Logo depois, os Estados Unidos anunciaram o fornecimento de seus Abrams, os mais potentes do mundo (veja abaixo a comparação entre as duas máquinas de guerra). “Isso vai ajudar a Ucrânia a defender seu povo e proteger seu território. Não é uma ameaça ofensiva à Rússia”, contemporizou o presidente Joe Biden, fazendo de conta que a presença dos blindados não representa uma guinada nas posições relativas das partes envolvidas no confronto.
No total, a Ucrânia deve receber “entre 120 e 140” blindados pesados, segundo cálculo do ministro das Relações Exteriores, Dmytro Kuleba — bem menos do que os 300 que o país julga necessários. A Rússia, evidentemente, chiou. “Tudo o que a Otan fizer será considerado por Moscou como uma participação direta no conflito”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, elevando a tensão diante da sempre presente ameaça russa de recorrer a armas nucleares.
O envio dos blindados à Ucrânia faz parte dos preparativos para uma esperada e supostamente iminente investida militar russa para tentar fechar o cerco na disputada região de Donbas, no leste da Ucrânia, que o presidente Vladimir Putin anexou à Rússia em setembro, mas sobre a qual não tem total controle. Depois de seus soldados darem vexame no campo de batalha e de passar os últimos meses na defensiva, tentando não perder o que já ocupou, o Kremlin parece estar encaminhando batalhões e equipamentos em massa na direção do terço da Ucrânia que controla. A expectativa é de combates intensos a partir deste mês — no dia 24, a invasão completa um ano —, prolongando-se ao longo da primavera no Hemisfério Norte. Para redefinir a fronteira entre os dois países, Putin estaria disposto a enfrentar o desgaste de uma escalada de mortos em combate.
Os tanques certamente ajudarão a resistência ucraniana (embora seja uma força reduzida diante do poderio russo), mas ainda demoram a entrar em combate. O treinamento para seu uso e manutenção já começou e dura em média seis semanas. Os primeiros blindados britânicos devem chegar no fim de março e os alemães, no início de abril. Não há prazo para a entrega dos Abrams americanos, que necessitam de 22 semanas de treinamento e prazo para cruzar o oceano. Quando chegarem, certamente farão diferença: até hoje, apenas nove Abrams foram destruídos, sete em incidentes de fogo amigo e dois explodidos para evitar que fossem capturados na guerra do Iraque, em 2003.
A entrada dos tanques no conflito enfraquece, pelo menos temporariamente, a aposta de Putin de que o Ocidente vai se cansar de apoiar a Ucrânia e reduzir seu envolvimento. “Trata-se de um caso clássico de guerra por procuração, na qual estrangeiros dão dinheiro, armas e outros tipos de apoio, mas não arriscam a vida de seus soldados e civis”, argumenta Monica Duffy Toft, diretora do Centro para Estudos Estratégicos da Universidade Tufts, nos Estados Unidos.
Washington já despejou 50 bilhões de dólares em ajuda à Ucrânia, prometendo mais 3,1 bilhões este mês. Até o Brasil entrou na parada quando, em janeiro, o governo alemão sugeriu que fornecesse munição de seu arsenal para os Leopard 2 — pedido não atendido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo funcionários do alto escalão militar ouvidos por VEJA, Lula “não quer se envolver em algo que não lhe diz respeito”, ainda mais por resvalar em risco para a agricultura, dependente dos fertilizantes da Rússia. Em visita a Brasília (leia), o chanceler Olaf Scholz voltou ao assunto e ouviu do presidente um ambíguo “quando um não quer, dois não brigam”.
Além de atender à preocupação imediata de conter a esperada ofensiva russa, o envio de tanques à Ucrânia também se insere em uma estratégia de segurança de mais longo prazo para a Europa. “A ideia é que a Ucrânia adquira uma força de dissuasão contra ataques futuros de uma Rússia rearmada e revanchista”, diz o analista militar Frank Ledwidge, da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido. Tendo obtido tanques, Kiev agora se empenha em convencer os aliados a ceder caças para a sua Força Aérea. Na prática, é o início de um novo capítulo na guerra sangrenta que não dá sinais de estar perto do fim.
LEOPARD 2A4 (Alemanha)
Início das operações: 1985
Tripulação: 4 pessoas
Peso: 62 toneladas
Velocidade máxima: 72 km/h
Diferencial: um sensor térmico capta imagens com alta definição até no escuro
M1 ABRAMS (Estados Unidos)
Início das operações: 1986
Tripulação: 4 pessoas
Peso: 67,6 toneladas
Velocidade máxima: 68 km/h
Diferencial: conta com uma blindagem de urânio antiexplosões
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827