Nunca antes na longa história do Reino Unido se viu tal coisa: um integrante do alto escalão da família real abrir mão de uma infinidade de regalias e ir ganhar a própria vida. Parece heroico, e provavelmente foi difícil, mas, no caso do príncipe Harry, o filho-estepe de Charles na linha de sucessão ao trono, o rompimento não só permitiu maior controle de seus atos como resultou em considerável proveito financeiro. No início do mês, um contrato assinado com a Netflix para produzir documentários, filmes e programas infantis ao longo de um número não revelado de anos lhe rendeu extraordinários 100 milhões de dólares. “Nosso foco é criar conteúdo que passe informação, mas também traga esperança”, explicaram Harry e sua mulher, a americana, mulata e divorciada Meghan, em comunicado conjunto, indiferentes aos raios de desagrado lançados pelo Palácio de Buckingham. Nada mal para quem nunca teve um emprego de verdade — e este é só o começo.
Os duques de Sussex — Harry, 36 anos, e Meghan, 39 — entraram no casamento com um bom pé de meia. A fortuna dela, ex-atriz de uma série bem-sucedida, era avaliada em 5 milhões de dólares. A dele, somados os proventos de oficial do Exército, a mesada do pai e a herança da mãe, era calculada em 25 milhões — sem contar casa, comida, roupa lavada, escritório, empregados, viagens e segurança bancados pelo Sovereign Grant, a fatia de impostos que sustenta a família real em suas atividades profissionais. Ao se desligar formalmente da “firma”, em 31 de março passado, Harry levou consigo o grosso do numerário: cerca de 15 milhões de dólares que herdou de Diana. O resto dispensou, dando-se ao luxo de devolver os 3 milhões gastos na reforma de Frogmore Cottage, a propriedade que recebeu com o casamento (e que continua à disposição do casal).
O contrato com a Netflix, em termos vagos e entregue a uma produtora que nem nome tem, faz parte da estratégia da empresa de se aliar ao time A das celebridades e assim atrair mais assinantes. O mesmo foi feito com Barack e Michelle Obama em 2018, um ano depois de deixarem a Casa Branca e, também eles, enveredarem por um caminho de volumosos proventos: venderam suas autobiografias por 65 milhões de dólares (a dela já foi publicada e é best-seller; o primeiro volume da dele sai em novembro). Ainda não se sabe de nenhum acordo dos duques de Sussex com alguma editora, mas em outro ramo eles vêm tendo performance semelhante à do ex-primeiro-casal americano — calcula-se em 1 milhão de dólares o valor cobrado por Harry e Meghan para palestras e conferências.
Antes dos duques de Sussex, filhos e netos de soberanos em posição menos nobre na linha sucessória (Harry está em sexto) nas monarquias da Noruega, Dinamarca e Holanda, entre outras, trataram de arranjar emprego e ganhar o próprio sustento, mas nenhum até hoje deixou de ser obrigado a comparecer aos compromissos reais. “Harry passou anos querendo se separar da família e ter mais liberdade. Sua atitude é inédita, mas acho que ficará cada vez mais comum, à medida que o número de royals de primeira linha vai se reduzindo em todas as casas”, diz a historiadora Marlene Koenig, especializada na monarquia britânica. Acomodados com o filhinho, Archie, que fez 1 ano em maio, na mansão à beira-mar que compraram perto de Los Angeles, avaliada em 15 milhões de dólares, os Sussex guardam com unhas e dentes sua privacidade, firme na vidinha plebeia que escolheram. Fotos de Archie são raras e a última vez que o casal apareceu junto foi no início da pandemia, de máscara, levando mantimentos a pessoas impedidas de sair de casa.
Fazendo tudo certinho, sem grandes escândalos, teriam Harry e Meghan enfim se livrado da sanha incessante dos tabloides, que, de trombada em trombada — inclusive com toques racistas —, tornaram o casal um de seus alvos preferenciais? Longe disso. Quanto mais os Sussex se escondem, mais os holofotes os procuram — geralmente para criticar. Por trás da rixa estão três processos que o casal move por invasão de sua intimidade. O mais retumbante, de Meghan contra o grupo que publica o Mail on Sunday pela divulgação de uma carta pessoal ao pai dela, Thomas Markle (com quem está rompida), deve começar as audiências públicas em Londres em janeiro — e é esperada a presença no tribunal da duquesa em pessoa. “Há boas chances de ela ganhar, pois as violações são graves. Mas, se perder, a ferocidade dos tabloides será maior ainda”, diz Eric Barendt, especialista em direito da imprensa da University College London. “Eles acharam que iam ter uma vida privada, mas apenas deixaram de ser royals para virar celebridade”, decreta Marlene. Se Meghan e Harry ainda não alcançaram a privacidade almejada, os negócios, pelo menos, vão muito bem, obrigado.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706