Hungria: escândalo sexual no governo conservador
Deputado-estrela do partido do governo é pego em orgia e abala as estruturas do premiê Viktor Orbán, o mais popular e imitado ultraconservador da Europa
Representante da Hungria no Parlamento Europeu desde 2004, quando o país entrou para a União Europeia, o barbudo deputado József Szájer, de 59 anos, era figura proeminente do Fidesz, o partido ultraconservador que ajudou a fundar, e assessor dos mais próximos do primeiro-ministro Viktor Orbán, o autocrata- modelo da Europa. Pois, para surpresa geral da nação, Szájer foi pego em uma noite de sexta-feira de calça curta — ou, mais precisamente, sem calça — em uma festinha só para rapazes em Bruxelas, a sede do Parlamento. O flagrante não teve, claro, nada a ver com a noitada de bebida e sexo consensual entre vinte adultos — a polícia baixou no apartamento, localizado no entorno da Grand-Place, atração turística da capital belga, porque vizinhos denunciaram uma aglomeração proibida pelos protocolos anti-Covid-19. Szájer conseguiu escapar pela calha do prédio, mas foi apreendido com as mãos ensanguentadas e ecstasy na mochila. Em postagem nas redes sociais, ele admitiu apenas que esteve em uma “festa privada”. Pediu desculpas “à família, aos colegas e aos eleitores”, anunciou que renunciará ao assento parlamentar em 31 de dezembro e se desfiliou do Fidesz.
A rápida contenção de prejuízo foi atrapalhada pela loquacidade do estudante polonês David Manzheley, dono do apartamento e das festas frequentadas por políticos e diplomatas de vários países. “Convido amigos, que convidam amigos e nos divertimos juntos. Conversamos, bebemos, como em um café — a diferença é que também fazemos sexo”, explicou. Sobre a noite fatídica, descreveu: “De repente, minha sala ficou cheia de policiais. Identidade, identidade! Todo mundo sem roupa, como alguém ia mostrar o papel?”, argumenta. Encostado na parede, Orbán repudiou o ato “inaceitável e indefensável” em uma entrevista que não deve ter feito muito sentido, já que, na imprensa que ele controla, o único erro de Szájer foi furar a ordem contra festas.
O conservadorismo é arma política de Orbán desde que chegou ao poder, em 2010. A Constituição que ele modificou só autoriza o casamento entre homem e mulher, “a base da família e da sobrevivência nacional”. Uma nova emenda em debate pretende bloquear a adoção de crianças por homossexuais e integrantes do governo — Szájer inclusive — são pródigos em declarações contra gays.
Nadando em popularidade, Orbán apresenta-se como “defensor da Europa cristã”, atacando imigrantes, LGBTs e outras religiões. Em 2015, no auge da crise de refugiados, ergueu cercas de arame farpado para impedir a entrada deles na Hungria. Sem apelar para golpes ou atos violentos, seu grupo político empreendeu uma eficiente corrosão das instituições. A reforma das regras eleitorais facilitou a conquista de folgada maioria no Congresso. Uma lei aumentou de onze para quinze os juízes da Suprema Corte, permitindo a indicação de magistrados aliados. Orbán também baixou a idade de aposentadoria compulsória para juízes e promotores, o que lhe permitiu preencher centenas de cargos e, na prática, controlar o Judiciário — a mulher de Szájer, por sinal, Tünde Handó, faz parte da tropa de juízes ultraconservadores. Orbán ainda teve sucesso em sufocar financeiramente toda a imprensa hostil ao Fidesz. “A Hungria não pode mais ser considerada uma democracia”, diz a ex-deputada holandesa Judith Sargentini, autora de um relatório sobre os abusos para o Parlamento Europeu.
A situação da Hungria, que serve de inspiração para autocratas na Polônia, Romênia e outros países da antiga União Soviética, está no centro da queda de braço que, no momento, bloqueia a aprovação do orçamento e do pacote de ajuda para a recuperação pós-pandemia da UE, uma cesta de 2 trilhões de euros. As regras do bloco determinam que o dinheiro só é acessível aos países que preservam valores democráticos. Húngaros e poloneses, empenhados em derrubar a cláusula, emperram a liberação dos recursos, que precisa ser unânime. Nos blogs de ultradireita europeus, o flagrante de Szájer foi visto como manobra para enfraquecer os conservadores nesse embate. A verdade, às vezes, dói.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717