Jordânia: uma puxada de tapete real
O rei Abdullah, ocupante do estável trono jordaniano, anuncia ter desbaratado um complô de seu meio-irmão com aliados estrangeiros
No meio de tantos barracos em casas reais mundo afora, justo uma das mais quietinhas, a da Jordânia, estremeceu nos últimos dias com os raios e trovões de uma inédita briga entre irmãos. De uma hora para outra, o príncipe Hamzah, de 41 anos, figura conhecida e popular no país, ficou impedido de sair de casa, enquanto a polícia prendia diversas pessoas ligadas a ele. O motivo, divulgado pelo vice-primeiro-ministro, Ayman Safadi: “cortar pela raiz” um suposto complô da oposição e de interesses estrangeiros para “desestabilizar” a Jordânia. O movimento foi contido rapidamente — um tio, o príncipe Hassan, entrou no meio para apaziguar os ânimos —, Hamzah jurou lealdade ao trono e seu meio-irmão, o rei Abdullah, 59, foi à TV assegurar aos súditos que “a sedição está enterrada”. Nem tanto. Muitas questões continuam a exalar odor desagradável no reino da Jordânia.
“O desafio dos últimos dias não foi nem o pior nem o mais perigoso para a estabilidade da nação, mas foi o mais doloroso, porque os envolvidos na rebelião eram da nossa casa e também de fora dela”, disse Abdullah, deixando entrever dias difíceis para seu meio-irmão, filho do finado rei Hussein com sua quarta mulher, a rainha Noor, nascida nos Estados Unidos (o monarca atual é filho da segunda rainha, a inglesa Muna). Hamzah não foi visto depois da fala do rei, tampouco se tem notícia dos quinze presos. Os meios de comunicação, evidentemente, foram proibidos de noticiar a tentativa de insurreição.
O enrosco veio a público quando o príncipe, tendo um retrato do pai ao fundo, divulgou um vídeo afirmando que recebera ordens para não sair de casa, tivera sua segurança removida e o acesso à internet bloqueado (falava de um telefone por satélite que lhe sobrara e que logo seria confiscado). Aproveitou para reforçar as denúncias de corrupção e má gestão que vinha fazendo nos últimos tempos, condenando um sistema “que decidiu que seus interesses pessoais e financeiros e a corrupção são mais importantes do que a vida e a dignidade dos jordanianos”. Não é só no discurso que Hamzah andou pondo as mangas do terno ocidental (mas a cabeça coberta à moda árabe) de fora: também se encontrou com líderes tribais à revelia do rei — que tem neles uma de suas mais essenciais bases de apoio — e, sem avisar ninguém, visitou um hospital onde pacientes de Covid-19 morreram por falta de oxigênio, prestando sua solidariedade às famílias.
Entre os detidos da semana está Bassem Awadallah, que já foi um dos assessores próximos ao rei Abdullah e, depois disso, assumiu funções em outros países árabes, sobretudo na Arábia Saudita, onde virou conselheiro do notório príncipe herdeiro Mohammed bin Salman — o que colocou lenha na fogueira do envolvimento estrangeiro na conspiração. A Jordânia, país inventado por britânicos e franceses quando repartiram o Oriente Médio na ponta do lápis após a I Guerra, faz fronteira com meio mundo — Israel, Iraque, Síria, a própria Arábia Saudita —, tem metade de sua população descendente de refugiados palestinos que para lá acorreram, dá-se bem com todos os vizinhos e, embora pobre e pouco influente, desempenhou durante décadas o papel de ponto de estabilidade na explosiva e instável região. Estados Unidos e Europa apressaram-se a manifestar apoio ao rei, mas uma nova relação de forças, em que o Irã aparece como inimigo maior e os sauditas como candidatos a potência regional, pode estar ameaçando a confortável situação geopolítica jordaniana.
Como em toda parte, a pandemia fez enormes estragos no país. O turismo, uma de suas principais fontes de renda, foi estancado e a crise econômica atinge níveis sem precedentes. O PIB recuou 3% em 2020 e o desemprego atingiu quase 30%, o mais alto em 25 anos. Em paralelo, o volume de contágio e mortes pelo novo coronavírus não para de crescer, colocando os hospitais em situação desesperadora. Nesse contexto, por mais que a família real tente reduzir as ações do príncipe — que foi herdeiro da coroa até 2004, quando Abdullah o trocou por seu próprio filho mais velho, hoje com 26 anos — a uma questão familiar interna, abafada dentro do palácio, acredita-se que dias de maior repressão virão por aí. “Uma insatisfação que era sussurrada nos círculos íntimos agora está exposta. A mídia foi silenciada, mas sabemos que há mais nessa história do que estamos vendo”, diz Daoud Kuttab, diretor da Community Media Network, sediada em Amã. No trono há 22 anos, ao lado da linda e elegante rainha Rania, Abdullah prova pela primeira vez — ao menos publicamente — o gosto das conspirações e puxadas de gloriosos tapetes que fazem a história do Oriente Médio.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733