Nas monarquias europeias, são comuns os escândalos de toda sorte, bem como nobres exilados que vagam pelo continente, em altíssimo estilo. Mas vamos combinar: Juan Carlos I, rei emérito da Espanha, exagerou. Carregando nas costas graves denúncias de evasão fiscal, tráfico de influência e corrupção, Juan Carlos, 82 anos, resolveu sair de fininho para local não revelado, plano discutido e aprovado pelo governo e pelo palácio, mas só trazido à tona depois do fato consumado. Em carta ao filho, o rei Felipe VI, ele justifica a decisão como um ato patriótico, com o propósito de permitir que o atual monarca “exerça suas funções de chefe de Estado com tranquilidade”. Juan Carlos deixa para trás um inquérito no Supremo Tribunal sobre falcatruas passadas, uma investigação na Suíça sobre fundos e contas mal explicadas e, mais grave ainda do ponto de vista político, um novo e profundo rombo no prestígio de uma casa real de alicerces abalados: pesquisas mostram que metade dos espanhóis prefere o regime republicano. “A monarquia ainda assegura uma certa unidade porque mudar o regime poderia abrir caminho para movimentos separatistas”, explica Bruno Ayllon, cientista político da Universidade Complutense de Madri.
O fio da meada das negociatas reais começou a ser desenrolado na Suíça, há dois anos, a partir de um depósito de 100 milhões de euros na conta de uma obscura fundação com sede no Panamá. Descobriu-se que a origem do dinheiro estava ligada ao rei Abdullah, da Arábia Saudita (morto em 2015), que o fundo era gerido por pessoas da confiança de Juan Carlos e que a transação intersoberanos ocorrera justamente na época em que um consórcio espanhol venceu a licitação para a construção de uma conexão por trem-bala entre Meca e Medina, obra monumental avaliada em 6,7 bilhões de euros. Procura daqui, procura dali, desencavou-se outro fundo suspeito, este em Liechtenstein e operado por um primo do monarca espanhol. Os inquéritos continuam correndo nos dois países e é pouco provável que Juan Carlos seja chamado a depor, visto que os fatos ocorreram quando o trono lhe dava imunidade. Mas que pegou muito mal, pegou.
Não é de hoje que há algo de podre no Palácio da Zarzuela. Juan Carlos sempre foi alvo de suspeitas de aceitar presentes indevidos, pela vida de alto luxo que levava. Em 2012, envolveu-se no enrosco mais rumoroso até então, ao cair e se machucar durante uma caçada na África. No decorrer da cobertura surgiu uma foto dele com um elefante morto, o que causou indignação pelo sacrifício do bicho e pela fortuna gasta no tal safári em um momento de crise econômica no país. Depois, veio à luz o fato de estar acompanhado da alemã Corinna Larsen, a mais constante de uma expressiva linhagem de amantes. Em 2014, premido pela impopularidade, Juan Carlos abdicou em favor do filho Felipe. Ganhou o título de rei emérito e tentou levar vida discreta no palácio, onde vive — ou melhor, vivia — separado da mulher, Sofía, há mais de cinquenta anos. Mais dois anos e novo alvoroço: a filha caçula, Cristina, e o marido, o ex-atleta olímpico Iñaki Urdangarin, foram pegos lucrando bastante com os recursos de uma fundação sem fins lucrativos. O atormentado Felipe VI revogou o título do casal, os duques de Palma. Urdangarin cumpre pena em cadeia próximo de Madri.
A mudança de domicílio é mais uma mancha em um currículo que já foi respeitável. Posto no trono pelo ditador Francisco Franco, Juan Carlos impôs-se guardião da democracia ao abafar uma tentativa de golpe em 1981. Conquistou fama de monarca esclarecido dos tempos modernos e virou meme ao encarar o venezuelano Hugo Chávez, em uma conferência, com o célebre “Por que não te calas?”. Neste seu decepcionante fim de carreira, até a loira Corinna reapareceu recentemente, furiosa porque a Justiça, suspeitando de lavagem de dinheiro, quer que devolva 65 milhões de euros depositados em sua conta pelo mesmo fundo panamenho que soou o alarme na Suíça. Corinna, ao depor perante autoridades, confirmou que Juan Carlos ganhava mimos do rei saudita e que viu certa vez ele sair de um encontro com uma mala de dinheiro vivo. Mas os 65 milhões, jura, foram presente de amigo para amiga. No decorrer da queda de Juan Carlos ladeira abaixo, que nem o drama da pandemia conseguiu deter, Felipe renunciou à herança do pai e, em maio, cortou-lhe a mesada — 195 000 euros anuais. Resta ver de qual fundo obscuro ou amigo milionário o rei emérito vai tirar dinheiro para se sustentar.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699