Militares decidirão se Maduro cai e se Guaidó governa a Venezuela
Entre a anistia oferecida pela oposição e a lealdade sem soldo, a Força Armada tornou-se fiel da balança política de um país em crise
A Força Armada Nacional Bolivariana, com 123.670 militares, tornou-se o fiel da balança que pende na Venezuela entre a lealdade ao ditador Nicolás Maduro, no poder desde 2013, e Juan Guaidó, líder da oposição que promete iniciar a transição para a democracia e convocar eleições presidenciais. Nem a mudança do regime nem a sua continuidade estará garantida sem o apoio da maioria desse contingente de uniformizados.
No último dia 30, em entrevista à agência russa RIA, Nicolás Maduro deixou escapar que militares estão desertando. De acordo com a agência Reuters, mais de 4.000 soldados abandonaram ilegalmente seus postos ao longo de 2018 e muitos deles emigraram para a Colômbia e o Peru. “Eles agora são mercenários da oligarquia colombiana e conspiram da Colômbia para dividir as Forças Armadas”, afirmou Maduro, ao acusá-los de promover um golpe de Estado com a ajuda dos Estados Unidos e de Bogotá.
No dia seguinte, Guaidó admitiu manter conversas “clandestinas” com militares venezuelanos. “A transição exigirá o apoio de contingentes militares importantes. Tivemos reuniões clandestinas com membros das Forças Armadas e das forças de segurança”, afirmou.
Não está claro o que o atual governante poderá oferecer à Força Armada Nacional Bolivariana (FANB), além dos benefícios que tornaram seu contingente menos vulnerável à crise de abastecimento de remédios e alimentos e ao depauperado sistema de saúda local. O líder da oposição, autodeclarado presidente interino da Venezuela, já tem em mãos um decreto de anistia, aprovado pela Assembleia Nacional, que poderá ser valiosa ao longo da redemocratização.
“Oferecemos anistia a todos aqueles que não forem considerados culpados por crimes contra a humanidade”, afirmou Guaidó, deputado do partido Vontade Popular e presidente da Assembleia Nacional.
A consolidação da FANB como uma força militar e policial de envergadura para garantir a sobrevivência do regime começou ainda no governo de Hugo Chávez, que fomentou um expurgo nas altas patentes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica pouco engajadas a seu regime. Depois, promoveu uma quantidade inusitada de coronéis a general – hoje, são 1.041 –, cercou-se de militares comprovadamente leais e distribuiu 25% dos cargos do Executivo a membros da FANB.
Sob a liderança de Maduro, esse porcentual subiu para 43,7%, segundo a organização não governamental Control Ciudadano. Dos seus 32 ministros de Estado, catorze são militares e dirigem as pastas de Defesa, Interior, Petróleo, Agricultura e Alimentação, além de comandarem a estatal petroleira PDVSA, que responde por 96% das receitas do país.
A FANB comanda a produção, a importação e a distribuição de alimentos – uma das áreas mais críticas do país, assolado há anos pelo desabastecimento. Também tem o controle de empresas petromineradora, emissora de televisão, universidades, banco, montadora de veículos e empreiteira. Além disso, 30% dos governadores estadual são provenientes do universo militar.
Maduro chegou a referir-se à FANB como a “espinha dorsal” do país. Na verdade, do regime. Seu governo detém ainda o controle da Assembleia Constituinte, que substituiu a Assembleia Nacional como Poder Legislativo do país em 2017, e do Tribunal Supremo de Justiça.
A FANB não atua apenas como uma força militar convencional, mas também como força de segurança interna da Venezuela. Para essa última função, a FANB dispõe da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e da Polícia Nacional Bolivariana (PNB). Ambas são altamente temidas pela população, sobretudo pelos moradores de favelas e pelos líderes da oposição, devido à ação truculenta e desprovida de ordem judicial.
A GNB e a Força de Ações Especiais (Faes) são apontadas por organismos de defesa dos direitos humanos como as principais responsáveis pela escalada da violência no país. Dentro da PNB, a Faes é formada por policiais que atuam encapuzados e geralmente em motocicletas como uma força sem limites legais. Sozinha, a Faes foi autora da morte de 4.998 pessoas em 2017.
“A Faes é um esquadrão da morte que semeia terror nas zonas populares com uma ação sistemática de execuções, invasões arbitrárias, roubo em residências e maus-tratos aos detidos”, segundo o ONG Programa Venezuelano de Educação – Ação em Direitos Humanos (Provea).
Desde a época de Hugo Chávez, a FANB dispõe também de uma reserva de 1,6 milhão de civis armados, ideologicamente afinados ao regime e prontos para o combate em frentes internas. Essa força pode ser vista circulando à paisana, em motocicletas, durante as manifestações contrárias do governo de Maduro. Não aguarda ordens de militares para atuar.
Esses setores policiais da FANB foram responsáveis pela morte de 40 pessoas e pela prisão de outras 850 durante as últimas manifestações em favor da renúncia de Maduro, retomadas desde o dia 23 sob convocação de Guaidó. Como regra, quanto mais desafiado é, mais temível se torna esse sistema de repressão orquestrado em última instância por Maduro.
A tensão política na Venezuela cresceu com a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino, em 23 de janeiro, legitimada pelos Estados Unidos e por boa parte dos países latino-americanos, entre os quais o Brasil. Mas Nicolás Maduro somente foi jogado às cordas quando Washington finalmente impôs sanções econômicas à estatal PDVSA, na semana passada.
O regime já não terá mais como sustentar-se – e à própria FANB – sem os recursos provenientes das exportações de petróleo. Em tese, Guaidó terá mais elementos para convencer os militares a aceitar sua oferta de anistia se eles não receberem nem mesmo o próximo soldo.
Para Peter Hakim, presidente honorário do think-tank Diálogo Interamericano, a anistia aos militares pode ser uma tática adequada para conquistar a parcela insatisfeita da FANB. Mas a decisão de Guaidó de conceder esse benefício somente aos que não cometeram crimes contra a humanidade pode limitar demais a adesão.
“A Venezuela foi um dos poucos países sul-americanos a não passar por ditadura nos anos 1970 e 1980. Todos os que foram governados por regimes de exceção tiveram de entrar em acordo com os militares, engolir a seco e conceder anistia geral”, afirmou Hakim.
Enquanto Guaidó estimula seus correligionários a irem a cada casa de soldado para expor o plano de anistia, negociações mais encorpadas estão ocorrendo entre ele e as altas patentes. Uma questão crucial ainda em aberto, segundo Hakim, é o papel dos militares no governo de transição, a ser conduzido por Guaidó até um novo presidente eleito tomar posse.
Outra incógnita é o destino de Maduro e seus colaboradores mais próximos. A presença de um avião da companhia russa Norwind Airlines desde 30 de janeiro no aeroporto de Maiquetía levantou a suspeita sobre o preparo de uma operação de retirada do ditador – ou até mesmo de transporte do estoque de barras de ouro do Banco Central venezuelano, como foi propagado na semana passada.
“A questão é: os militares vão tomar o controle ou não do governo de transição? Deles dependerá a decisão sobre o destino de Maduro, se ele será preso na Venezuela ou exilado”, afirmou Hakim. “Mas até tudo isso ser definido, a oposição terá de se manter unida, o que não conseguiu nos últimos vinte anos”, completou.
Não à toa, o conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, tem apelado aos militares venezuelanos por um motim. “Pedimos ao Exército venezuelano e às forças de segurança que aceitem a transição pacífica, democrática e constitucional do poder”, disse.
A convivência de Maduro com os militares não tem sido tranquila desde o ano passado. Em março, ele expulsou do Exército 24 oficiais aos quais acusara de planejar um golpe de Estado. Nesse grupo estava o capitão Juan Carlos Caguaripano, que liderou uma tentativa de invasão a um arsenal do Exército no norte do país. Dois de seus subordinados morreram.
Em agosto do ano passado, quando comandava uma parada militar em homenagem aos 81 anos da GNB em Caracas, Maduro foi alvo de ataques de drones. Saiu ileso, mas promoveu uma ampla perseguição a militares supostamente vinculados ao atentado. Entre os seus alvos estava o coronel Oswaldo García Palomo, exilado havia meses na Colômbia. O militar foi sequestrado por forças venezuelanas que entraram clandestinamente no país vizinho e está preso na sede da Direção de Contrainteligência Militar (DGCIM), em Caracas.
(Com AFP)