Há noventa dias os israelenses choram os mortos, feridos e sequestrados no brutal ataque do grupo palestino Hamas em 7 de outubro. Há noventa dias as Forças Armadas de Israel bombardeiam e metralham sem cessar a estreita Faixa de Gaza, quartel-general do Hamas, hoje um pedaço de terra destroçado e atolado em uma gigantesca crise humanitária. Era de se esperar, após tanta tragédia, que a situação caminhasse para algum tipo de trégua. Mas não — ela só faz piorar. Pressionado de todos os lados, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu começou o ano anunciando a retirada do equivalente a cinco brigadas do norte de Gaza, um raríssimo sinal positivo que durou menos de 24 horas. Expandindo o conflito para além da fronteira, na terça-feira 2, uma bomba dirigida remotamente explodiu sobre uma casa em um subúrbio de Beirute, capital do Líbano, e matou Saleh al-Arouri, o número 2 do Hamas, e mais quatro pessoas. Horas depois, outras duas explosões, dessa vez na estrada para um cemitério em Kerman, no Irã, deixaram 103 mortos e 170 feridos entre os participantes de uma cerimônia em homenagem ao general Qassem Soleimani, fundador e comandante da Guarda Revolucionária, força de elite dos aiatolás, que um drone americano assassinou quando se encontrava em Bagdá, no Iraque, há exatos quatro anos. O atentado em Beirute foi assumido extraoficialmente por forças israelenses. Sobre a bomba no Irã, ninguém se manifestou.
As duas ações fazem escalar o risco de ampliação da guerra contra o Hamas para novas frentes. Detentor do poder de fato no Líbano — tanto quanto possível em um país à deriva —, o grupo armado Hezbollah, apoiador do Hamas com quem as Forças Armadas israelenses vêm tendo atritos na fronteira norte desde o início da ofensiva em Gaza, prometeu vingança contra a morte de Al-Arouri em uma área de Beirute sob seu controle. Em pronunciamento na TV, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, condenou o “crime grave, perigoso, sobre o qual não podemos nos calar”, segundo ele uma “flagrante agressão israelense”. Muito mais organizado e bem armado do que o Hamas, a milícia libanesa tem conexão direta com o governo do Irã, inimigo-mor de Israel no Oriente Médio e palco do segundo ataque, o do dia 3 — igualmente qualificado de “ato terrorista” que não ficará sem reação. “Os malignos e criminosos inimigos da nação iraniana mais uma vez promoveram um desastre que martirizou um grande número de pessoas. Esse desastre terá resposta”, ameaçou o aiatolá supremo, Ali Khamenei. Enviados do governo americano de novo puseram-se em campo para tentar acalmar os ânimos.
Entre reuniões do gabinete de emergência, que inclui líderes da oposição, e visitas ao front, Netanyahu vai projetando a imagem de comandante da guerra contra o terrorismo, hoje seu único pilar de sustentação em um cenário de fraqueza política e altíssima impopularidade. Ele é criticado pelo vacilo na segurança que permitiu o ataque do Hamas e por fazer muito pouco para resgatar os cerca de 100 reféns ainda em poder do grupo — acusações que se somam ao descontentamento pré-guerra, quando multidões foram às ruas, semana após semana, protestar contra uma reforma do Judiciário promovida pelo primeiro-ministro e seus aliados da extrema direita religiosa. Nessa seara, Netanyahu acaba de levar um golpe. Por apertadíssima maioria de oito a sete, a Suprema Corte votou pela revogação do projeto de lei que suprime o direito do Judiciário de se pronunciar sobre decisões do governo ou do Parlamento. Mesmo advogando em causa própria, os juízes têm o apoio da classe média de metrópoles como Tel Aviv e Haifa, preocupada com a perspectiva de decretos e leis abalarem as estruturas do país sem o freio dos tribunais.
O primeiro-ministro e seu partido, o Likud, limitaram-se a protestar contra a revogação — as regras do gabinete de emergência impedem que o Parlamento aprecie propostas que não tenham a ver com a guerra. “Mas a decisão da Suprema Corte complica a sobrevivência política de Netanyahu”, diz Noa Sattath, diretora da Associação pelos Direitos Civis de Israel. Para complicar ainda mais sua situação, a investida militar em Gaza está afetando as finanças do país: segundo cálculo do Banco Central, o custo do conflito pode ultrapassar 50 bilhões de dólares, equivalentes a 10% do PIB, o que vai triplicar o déficit orçamentário. Na Terra Santa, os povos começam o novo ano com pouca esperança de dias melhores.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874