Mudança no Coliseu reabre polêmica sobre intervir em monumentos seculares
O projeto de colocação de um piso ultramoderno no anfiteatro causa dúvida sobre mexer em obras de arte inestimáveis
Construído em 72 d.C. por ordem do imperador Flávio Vespasiano, o Coliseu é uma das mais vistosas relíquias do Império Romano: um anfiteatro colossal, com altura de um prédio de doze andares e arquibancadas que acomodavam 50 000 espectadores sedentos do sangue derramado nos embates entre gladiadores. De tão corriqueiro, perder a vida na arena fazia parte da saudação pronunciada antes do, digamos, espetáculo diante do camarote imperial — “Ave, César, os que vão morrer te saúdam”. O passado de violência e glória foi abruptamente encerrado em 404, quando outro imperador, Flávio Honório, proibiu os confrontos. A partir daí, o Coliseu foi se deteriorando aos poucos até se transformar no cartão-postal mais visitado da capital da Itália, magnetizando uma multidão, antes da pandemia, de 7,6 milhões de pessoas por ano. Agora, uma ousada reforma projetada pelo governo está polarizando opiniões entre os que aprovam a intervenção — instalar no centro do círculo de pedras milenares um moderníssimo piso de madeira e fibra de carbono — e os que acham o plano uma abominável “disneyzação” do monumento.
Não é a primeira briga do gênero. Quanto mais a tecnologia avança e as autoridades buscam maneiras de turbinar suas atrações turísticas, mais os puristas se levantam contra o que veem como uma profanação da história — o tipo de polêmica que não tem solução fácil. O piso planejado para o Coliseu será retrátil e móvel, controlado eletronicamente e medido para cobrir inteiramente a arena — atualmente, pode-se pisar apenas sobre uma pequena faixa, inaugurada em 2000. “Estamos finalmente restaurando a visão que os gladiadores tinham na Antiguidade”, diz Alfonsina Russo, diretora do complexo arqueológico do Coliseu. O piso original, de madeira, foi removido quando escavações em 1870 expuseram o labirinto de corredores subterrâneos por onde circulavam gladiadores e animais selvagens, as estrelas do show. Optou-se então por deixar as galerias a céu aberto, para serem mais bem apreciadas.
Com o novo assoalho high-tech, encomendado a uma empresa de engenharia de Milão ao custo de 18 milhões de dólares e com inauguração prevista para 2023, o visitante poderá caminhar (e, claro, tirar selfies) bem no centro da arena, com as arquibancadas em volta. Também continuará podendo apreciar as galerias embaixo dele no momento em que as ripas girarem 90 graus, como uma persiana. O local ainda deverá ser usado para apresentações culturais.
Os defensores do projeto argumentam que o piso vai, inclusive, contribuir para a conservação das ruínas — além de recolher e reaproveitar a água da chuva, estará equipado para equilibrar a temperatura e a umidade, prevenindo a degradação do subsolo. Nada disso comove os especialistas mais puristas, para quem o Coliseu tem de ser mantido intacto. “A Itália enfrenta um momento dramático no que diz respeito à proteção de seu patrimônio. Os olhos das autoridades estão voltados apenas para o turismo de massa”, critica o historiador Salvatore Settis. A mesma toada acompanha a controvertida adição de um piso de cimento à Acrópole de Atenas, que se arrasta desde 2019. O governo grego afirma que ele é imprescindível para facilitar o irregular acesso ao portentoso Partenon, mas o trecho já instalado impermeabilizou o solo, com consequências deletérias: na temporada de chuvas de dezembro passado, um temporal alagou parte das ruínas, um risco para sua preservação.
Apesar da grita, a Grécia não vai parar por aí. Em fevereiro, o Conselho Arqueológico Central deu sinal verde para o audacioso projeto de reconstrução do propileu, o saguão de entrada da Acrópole, com uma réplica da belíssima escadaria de mármore projetada pelo arquiteto Menesicles em 437 a.C. Em carta endereçada à Unesco, o órgão da ONU que trata de patrimônio histórico, acadêmicos gregos e de universidades renomadas, como a britânica Oxford e a americana Brown, classificaram a empreitada de “desvalorização, ocultação e degradação do maior tesouro arqueológico e artístico da Grécia”. Segundo eles, os acréscimos são imprecisos e desafiam o protocolo internacional de preservação histórica. “Querem erguer uma Acrópole de fantasia, baseada no romantismo dos séculos XVIII e XIX, que não tem nada a ver com a original”, dispara Yannis Hamilakis, arqueólogo da Brown University.
Replicar monumentos na base da imaginação também está movimentando times pró e contra na China, onde se discute a reconstrução do Antigo Palácio de Verão, joia arquitetônica de Pequim arrasada pelos ingleses na Guerra do Ópio, em 1860. Uma cópia foi erguida em outro local, ao custo de 4,5 bilhões de dólares, mas a proposta agora é reerguer o palácio exatamente sobre as ruínas do primeiro e, assim, reabilitar uma página vergonhosa do passado. “Há uma série de questões envolvidas. O interior, por exemplo, já que não sabemos como era o original”, diz Ying-Chen Peng, especialista em China da American University, em Washington. No México, o Trem Maia, projeto de estimação do presidente Andrés Manuel López Obrador, está deixando os conservacionistas de cabelo em pé. Quando finalizada, a linha férrea de 1 500 quilômetros vai conectar os principais sítios maias de cinco estados, despejando, de acordo com seus críticos, um excesso de visitantes em ruínas com pouca ou nenhuma infraestrutura e ameaçando a quase intocada natureza local.
A polêmica se estende à restauração de obras de arte, missão que, submetida a mãos incompetentes, costuma resultar em desastre — como a Sant’Anna de Leonardo da Vinci, que se livrou do tom amarelado da idade para ganhar azuis vívidos pouco convincentes. Até a magnífica Santa Ceia sofreu interferências indignas: a sua recuperação deixou espaços em branco que os restauradores preencheram em tons suaves de aquarela. Na briga sobre se vale ou não a pena mexer em obras históricas, os puristas perdem terreno sempre que é citado o exemplo da pirâmide de vidro do Museu do Louvre. Quando o arquiteto sino-americano I.M. Pei (1917-2019) revelou o projeto, em 1985, o então presidente François Mitterrand foi chamado de “aspirante a faraó”, de “Mitterrandsés I” e acusado de desfigurar o centro histórico de Paris. Inaugurada em 1989, a esplendorosa pirâmide — 675 painéis de vidro em formato de diamante sustentados por 128 vigas de aço — calou os críticos, fez cair o queixo de todo mundo e é hoje, por si só, uma atração turística da cidade. A lição de I.M Pei: com talento, sofisticação e coerência, é possível, sim, valorizar ainda mais o legado do passado. Basta ter bom gosto e bom senso.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739