No Japão, atores são contratados para viver parentes em situações reais
Cercada de mistérios, 'tendência' ganha força e já inspira até a ficção
O cineasta alemão Werner Herzog construiu seu estilo explorando situações psicológicas extremas. Quando não está dirigindo documentários, busca em histórias verídicas a inspiração para seus filmes ficcionais. É o caso de Uma História de Família, longa-metragem mais recente do diretor, em cartaz no Brasil. A trama é centrada em Yuichi Ishii e sua empresa de aluguel de parentes, chamada Family Romance. Funciona assim: atores substituem pais, mães, namorados ou amigos de contratantes que não têm entes queridos para exibir à sociedade. Solteiros simulam relacionamentos amorosos felizes, órfãos relembram como é ter figuras parentais e noivos enchem seus casamentos de convidados. O roteiro foi escrito por Herzog, mas tanto Ishii quanto sua agência existem de verdade.
O serviço começou de forma inusitada. Uma conhecida de Ishii não conseguia inscrever o filho em um jardim de infância porque era mãe solteira. Cansada das recusas, fez um apelo ao amigo: queria que ele fingisse ser seu marido. Ele topou, mas a entrevista foi um desastre. “Não sabia como agir direito com a criança, nem o que dizer como pai”, disse Ishii. Foi assim que teve a ideia de criar a agência, que ofereceria treinamentos e cursos de dinâmica familiar para atores, além de informações sobre a vida dos clientes, evitando situações embaraçosas como a vivida na reunião escolar. O preço seria calculado de acordo com a dificuldade de cada caso, mas a média ficaria em 200 dólares por quatro horas de serviço. O negócio deu certo. Em 2019, a Family Romance tinha 2 200 funcionários. Foi nessa época que Herzog se interessou pela agência. O cineasta entrou em contato com o Ishii e misturou diversas histórias para contar o caso, supostamente verídico, de uma mãe que contrata um dos atores para se passar por seu marido ausente e criar uma conexão entre ele e a filha adolescente.
O diretor alemão não foi o único a documentar o serviço oferecido pela agência. Publicações de diversas partes do mundo foram atrás de Ishii — e acabaram ludibriadas por ele. Em novembro de 2018, a rede pública japonesa NHK lançou um documentário sobre a Family Romance centrado em um homem que teria contratado atores para representar sua mulher e filhos após a morte da esposa. Depois, a rede descobriu que também o entrevistado, assim como outros supostos clientes, eram todos atores da agência.
Nem mesmo a prestigiosa The New Yorker escapou da teia de relações ambíguas da Family Romance. A revista publicou uma reportagem sobre a indústria japonesa de aluguel de parentes, explorando detalhes e esquisitices do serviço. Mas a suspeição da NHK disparou um alarme entre os jornalistas, que decidiram refazer a apuração. A investigação mais profunda mostrou que os principais personagens citados haviam mentido para os checadores de fatos sobre seus relacionamentos, dizendo serem viúvos ou solteiros quando, na verdade, eram casados. De forma inédita, a The New Yorker devolveu o prêmio National Magazine, oferecido à publicação pelo texto sobre a agência. De acordo com a revista, apesar de as mentiras recorrentes terem abalado a credibilidade do fenômeno, ele é real.
O que levou ao surgimento de empresas como a Family Romance? A resposta está na própria cultura oriental, segundo Herzog. “O Japão tem a maior população de idosos do mundo, e muitos deles sofrem com a solidão”, afirmou o cineasta. Há ainda uma questão de reputação. Para os asiáticos, manter uma boa imagem é vital para a conquista de um bom emprego ou assegurar um lugar de destaque na sociedade. As redes sociais potencializaram o fenômeno. “As mídias permitem que os usuários se retratem de forma idealizada, algo que não conseguem fazer no mundo real”, explica Alton Chua Yeow Kuan, pesquisador de redes sociais da Universidade Tecnológica de Nanyang e autor de diversos estudos sobre os efeitos do uso dessas plataformas. “Seria melhor que a sociedade não precisasse desse tipo de serviço, mas, por enquanto, não é assim”, diz Ishii. Com certa melancolia, ele descobriu que a carência pode ser um bom negócio.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765