Nos bastidores da guerra, China move peças para se fortalecer contra EUA
Em meio a mortes e destruição na Ucrânia, potência amplia poder de influência no embate com os americanos pela hegemonia mundial
Quase um mês depois de as tropas de Vladimir Putin invadirem a Ucrânia e desencadearem a maior ação militar em solo europeu desde a II Guerra Mundial, as peças do intrincado xadrez geopolítico global se movem em velocidade espantosa, desenhando uma nova configuração de poder. A Rússia, à custa de morte e destruição, tenta sacudir a irrelevância a que foi relegada com o fim da União Soviética, em 1991. A Europa superou as diferenças internas para se unir contra a sanha expansionista russa, impondo duríssimas sanções ao governo de Moscou e acionando uma rede de abrigo aos ucranianos em fuga. Os Estados Unidos reeditaram seu enferrujado protagonismo internacional, reforçando a aliança militar ocidental, a Otan, e destinando mais de 13,6 bilhões de dólares em ajuda a Kiev. E a China, onde entra nisso? Potência econômica em permanente expansão, com interesses espalhados pelos quatro cantos do globo, ela se equilibra no muro da neutralidade dúbia e movediça, sabendo que, se mover as peças com habilidade, como tem feito, é quem mais tirará vantagem do novo cenário.
Antes de jogar no lixo séculos de avanço civilizatório e atacar a Ucrânia, Putin tratou de estrategicamente reforçar os laços com a China, o grande pilar do lado Oriental capaz de lhe dar guarida contra as forças do Ocidente. Único líder de peso a prestigiar a abertura da Olimpíada de Inverno de Pequim, em fevereiro, ele aproveitou o palco para formar dupla com o presidente Xi Jinping. Os dois tiveram “discussões calorosas” e condenaram “a interferência de forças externas em assuntos de países soberanos”. A amizade entre Rússia e China “não tem limites”, afirmou Xi. Àquela altura, as tropas russas já contornavam a fronteira ucraniana, mas o governo chinês, da mesma forma que a maioria dos analistas, devia achar que o bote, se fosse dado, seria rápido e certeiro considerada a imensa superioridade militar. O que se viu, no entanto, foi uma resistência feroz, aliada a um eficiente fluxo de mísseis, drones e equipamentos supridos pelo Ocidente, que freou o avanço dos invasores.
Ao mesmo tempo, europeus e americanos estrangularam a economia russa fechando os bancos e instituições financeiras a todo tipo de transação com o país, congelaram suas reservas, empreenderam uma cruzada contra os oligarcas bilionários que sustentam o regime e cortaram o fornecimento de produtos cruciais, como chips e equipamentos da indústria petrolífera. Quase todas as grandes marcas internacionais, do McDonald’s à Shell, saíram da Rússia, unindo-se à indignação contra a invasão (leia a coluna de Vilma Gryzinski, na pág. 49). Diante da inesperada reação, a China, mais que depressa, tratou de corrigir sua rota, se movimentando com mestria em seu próprio xadrez chinês — o jogo de tabuleiro que envolve uma batalha tática.
A posição de Pequim, por ora, é não se comprometer com nenhum lado. O Ministério das Relações Exteriores declarou que a Ucrânia tem direito à soberania sobre seu território, mas simultaneamente se recusou a censurar a Rússia na Assembleia-Geral da ONU. “O pragmatismo da diplomacia chinesa é antigo, vem desde os tempos de Mao Tsé-tung”, lembra Jude Blanchette, especialista do Center for Strategic and International Studies, de Washington. O chanceler Wang Yi garantiu que seu país vai respeitar as sanções internacionais contra a Rússia, mas a operadora de cartões chinesa UnionPay está pronta para ocupar o lugar de Visa e Mastercard, que restringiram sua atuação.
Na ordem dos parceiros econômicos, a Rússia é chá pequeno para a China — o comércio entre os dois países representa um décimo do 1,4 trilhão de dólares em bens trocados com os Estados Unidos e a Europa (veja o quadro). “A China tem o direito de salvaguardar seus direitos e interesses legítimos”, traduziu Wang Yi, em bom mandarim. Nem por isso os chineses vão deixar de tirar partido do enfraquecimento econômico da Rússia em tempos de guerra. Em gesto revelador, o embaixador da China em Moscou recomendou, em recente reunião com os principais investidores chineses, que aproveitem a crise para comprar ativos depreciados. Não será a primeira vez. Após a anexação da província ucraniana da Crimeia, em 2014, a Rússia sofreu uma série de punições internacionais. Pequim aproveitou o vazio e, em 2021, o comércio entre os dois países bateu recorde de 147 bilhões de dólares.
A China é uma potência industrial, mas carece de recursos naturais. A Rússia é o exato oposto. A aproximação entre os dois traz para a China a vantagem extra de ter onde comprar armas, um dos poucos setores em que a Rússia mantém superioridade. Até pouco tempo atrás, Moscou relutava em fornecer aos chineses, notórios copiadores de projetos alheios, mas agora a situação mudou. “Com boa parte do mundo unida para punir a Rússia, a economia já sofre um duro golpe, e o apoio econômico da China é fundamental”, diz Helena Legarda, analista do Mercator Institute for China Studies, com sede em Berlim. Enquanto assume cautelosamente a posição de salvadora da pátria russa, a China trabalha para manter intacta sua ponte para a Europa, cuidadosamente construída por Xi Jinping. Ao longo da última década, os chineses investiram pesado na expansão de empresas para o pujante mercado europeu. “Para assumir a dianteira da globalização, a China sabe que precisa de uma economia aberta e integrada”, avalia Salvatore Babones, sociólogo da Universidade de Sidney.
No rearranjo do tabuleiro mundial, a Europa surge como peça fundamental entre o Ocidente e o Oriente. Os bombardeios incessantes sobre a Ucrânia, que arrasaram cidades como Mariupol e Kharkiv, chegaram nos últimos dias à capital, Kiev, atingindo prédios e aterrorizando civis. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, depois de pedir admissão imediata na Otan — o que por um lado lhe daria tremendo poderio bélico e, por outro, poderia desencadear a III Guerra Mundial —, admitiu que seu país provavelmente nunca entrará na aliança, o que atende a uma das principais exigências russas. “Passamos anos ouvindo que a porta estava aberta, mas agora dizem que não podemos entrar. E é verdade”, falou Zelensky, pouco antes de trilhar mais uma etapa de seu périplo virtual pelos Parlamentos aliados, desta vez dirigindo um dramático apelo por mais armas e mais ajuda aos congressistas americanos reunidos na Casa Branca.
É na Europa que os Estados Unidos, ainda o país mais poderoso do mundo, tentam se impor na linha de frente da defesa da democracia, lubrificando as engrenagens da Otan, a aliança que, sob seu comando, agregou a Europa Ocidental contra a ameaça do bloco comunista. O bloco virou pó, mas a Otan não só sobreviveu como cooptou países da banda “inimiga”, um dos gatilhos para a deplorável investida de Putin contra o vizinho mais fraco. A imediata e unânime reação dos países europeus à tirania do autocrata russo, no entanto, jogou água fria nos desígnios do governo de Joe Biden — vários estão tomando medidas para, pela primeira vez desde a II Guerra, reforçar orçamentos de defesa e se armar contra novas ameaças. A China, evidentemente, dá apoio incondicional ao movimento. Em longos editoriais, analistas da mídia estatal incentivam a Europa a decidir seu rumo sem interferência americana.
A doutrina Xi, que rege a China e deve continuar a fazê-lo por muito tempo, uma vez que ele pretende conquistar novo mandato neste ano, prega a absoluta coesão interna como fator vital para a expansão externa que fará do país a próxima superpotência mundial. Até 2030, prevê-se que o PIB chinês, de fato, passe o americano — este o grande embate deste século, que transcorre em bases distintas da polarização do passado, entre Estados Unidos e União Soviética. A ambição hegemônica de Pequim vem sendo posta à prova pela pandemia — empenhado em zerar as infecções, o governo impõe quarentenas que interrompem cadeias produtivas e afetam os resultados econômicos. A guerra na Ucrânia — sobre a qual Biden e Xi tinham uma conversa virtual marcada para sexta-feira 18 — veio redesenhar, com traços mais firmes, o curso planejado pelos estrategistas chineses para alcançar o topo do mundo. Com a Rússia dependente de seu suporte e entalada em uma guerra possivelmente sem vencedores, com a Europa mais independente e precavida, a China ganhará nova estatura no embate com o rival Estados Unidos. E o mundo, provavelmente, nunca mais será o mesmo.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781