O que Roma Antiga, Musk e Zuckerberg têm em comum? Autor explica a VEJA
Em entrevista, Aldo Cazzullo afirma que conhecer o mito de Roma é muito mais que conhecer o passado, é entender a própria civilização que ainda nos molda
Todos os caminhos levam a Roma? Para o jornalista e historiador italiano Aldo Cazzullo, autor de “Roma, o império infinito:
A história da civilização que moldou o Ocidente”, lançado recentemente pela HarperCollins, a reposta é sim: o império caiu, mas suas bases sólidas ficaram fincadas na fundação do Ocidente, na história política e, mais recentemente, nas Big Tech.
Em entrevista a VEJA, Cazzullo afirma que conhecer o mito de Roma é muito mais que conhecer o passado, é entender a própria civilização que ainda nos molda.
O senhor argumenta que o império romano nunca caiu e que o Ocidente foi construído sobre as bases deixadas pelos romanos. A linguagem política ainda é a mesma?
A linguagem da política é de fato a mesma que era nos tempos da Roma Antiga. A palavra “repubblica” não existe apenas em italiano, português e outras línguas românicas. Também pode ser encontrado em alemão, “republik”, e em inglês, “republic”. “Res Publica”, que significa “coisa pública”. A ideia de que o Estado pertence a todos tem origem em Roma.
E o Senado, como sabemos, existe não apenas na Itália, mas também na França, Espanha, Brasil e Estados Unidos – de fato, o edifício do Parlamento americano é chamado de Capitólio. “Ordem e progresso” é o lema do Brasil: essas duas palavras também vêm da Roma Antiga. Da mesma forma, palavras como “lei”, “socialismo”, “comunismo”, “nazismo”, “clemência”, “justiça”, “liberdade”, “povo” e “cidadão” vêm todas do latim.
Por trás das palavras há fatos, e embora “democracia” seja uma palavra grega, sua primeira e verdadeira implementação foi a da República Romana: era o povo que fazia as leis, elegia os magistrados e declarava paz e guerra, não o senado. É verdade que era uma democracia imperfeita – já que mulheres e escravos eram excluídos dela – mas foi o início da longa jornada em direção às liberdades civis que conquistamos e ainda defendemos hoje.
O senhor traça comparações entre as Big Tech e um governo global, uma das características de Roma. Como isso se encaixa com nomes como Elon Musk e Mark Zuckerberg?
Não sou eu quem diz isso, mas Priscilla Zuckerberg que, após sua lua de mel em Roma, comentou: “Senti como se fôssemos três: eu, Mark e Augusto.” Isso porque Mark Zuckerberg se fotografou com todas as estátuas de Augusto que conseguiu encontrar, e há muitas delas!
Augusto foi o primeiro homem cujo rosto era conhecido por todos, pois ele encomendou 2500 estátuas de si mesmo. Além disso, Zuckerberg nomeou suas filhas Augusta, Maxima e Valeria – três nomes romanos. Ele também conclui reuniões gritando “dominium”, e durante uma delas – a com Roma – ele apareceu com um avatar vestido como Augusto. Podemos dizer que ele está convencido de que é um novo imperador romano: Augusto foi o primeiro homem a governar uma comunidade tão vasta quanto o mundo, de pessoas que não se conheciam, mas que nasceram e morreram sob o mesmo César. Da mesma forma, Elon Musk se autoproclamou “imperador de Marte”, levando os dois a quererem lutar no Coliseu.
Há um movimento anticolonialista muito forte no mundo, com derrubada de estátuas e revisão da história e práticas imperialistas. Ninguém derruba estátuas de Augusto ou de outros imperadores. Como explicar isso?
De fato, é verdade; estamos testemunhando um forte movimento anticolonialista, mas ninguém está mirando no Império Romano. De fato, no TikTok, a pergunta “quantas vezes por dia você pensa no Império Romano?” se tornou viral. É um fenômeno interessante, porque a Roma antiga é a marca do colonialismo: todo imperador na história se sentiu como o novo Júlio César, e todos os impérios na história se apresentaram como herdeiros dos antigos romanos. Pense no Sacro Império Romano de Carlos Magno, o Império Romano do Oriente.
Czar e Kaiser são palavras derivadas de César, e não é coincidência que a águia – símbolo do Império Romano – também seja um símbolo dos Impérios Alemão e Russo. Mas o que mais se aproxima é, na minha opinião, a América: uma vez derrotados seus inimigos, eles os transformam em aliados (como fizeram com os italianos, japoneses e alemães após a Segunda Guerra Mundial). No entanto, o Império Romano não é afetado por esse movimento anticolonialista. Talvez seja porque todo revolucionário na história se sentiu como o novo Spartacus – estou pensando no lindo filme “Spartacus” de Stanley Kubrick; e também nos “espartaquistas”, os comunistas alemães que, depois da Primeira Guerra Mundial, queriam fazer uma revolução e estavam prontos para lutar e morrer em nome de um escravo antigo e misterioso que havia feito o mesmo milhares de anos antes. Como ele, eles encontraram um final infeliz.
Fala-se muito sobre heróis e figuras masculinas notáveis, como Spartacus. Qual era o papel das mulheres no Império Romano?
As mulheres eram excluídas da política, mas isso não significa que não fossem relevantes. E não estou pensando apenas em grandes mulheres famosas, como Cleópatra (que seduziu César e Marco Antônio) ou Lívia, esposa de Augusto (que conseguiu levar seu filho Tibério, de quem ele não era pai, ao trono). Estou pensando no fato de que em nenhuma civilização antiga as mulheres eram tão livres quanto na Roma antiga. Na Grécia antiga, as mulheres tinham que ficar em casa, enquanto na Roma antiga elas podiam ir aonde quisessem; elas iam ao teatro, aos banhos. Elas podiam estudar, podiam herdar a propriedade de seu pai: isso significa que elas tinham permissão para ser economicamente independentes. Todos esses são direitos que nossas avós, na Europa, receberam apenas cem anos atrás. Não apenas isso: após a introdução por Augusto de leis moralizantes que limitavam a liberdade sexual das mulheres (introduzindo, por exemplo, o crime de adultério feminino), as mulheres romanas ocuparam o fórum em protesto, para reivindicar sua liberdade de amar. Foi a primeira ocupação feminista da história.
Para além da política, qual é o principal legado deixado pelo Império Romano?
O legado é enorme. Não é apenas uma questão de leis, política, nem uma questão artística – pense no estilo arquitetônico em que a América foi construída, o estilo neoclássico – não é apenas uma questão de cinema, literatura, videogames, quadrinhos. O legado mais importante é a ideia de governo mundial. Todos se lembram de como “Gladiador” começa: “ao meu sinal, libertem o inferno”. Poucos, no entanto, se lembram do final. “Havia um sonho que era Roma, ele será realizado”, diz Maximus Decimus Meridius, o gladiador, antes de morrer. Qual era o sonho romano? Era o governo mundial, a paz universal: uma comunidade tão vasta quanto o mundo conhecido, em paz, não porque fosse fraca e dividida, mas, ao contrário, porque era forte e unida. Não quero mitificar o Império Romano, que também era feito de sangue, violência e opressão. No entanto, o sonho do governo mundial ainda vale a pena sonhar, especialmente agora, por causa dos problemas globais que enfrentamos.
Um governo global seria o maior mito de Roma?
No Brasil, debateu-se recentemente se a questão da Amazônia é um problema brasileiro ou global. Obviamente, é um problema global; assim como a mudança climática, pela qual a Europa, a Índia, a China e os Estados Unidos têm grande responsabilidade. Devemos enfrentar esses problemas juntos. Houve um momento na história recente em que esse sonho parecia próximo de se tornar realidade: o final dos anos 1980, após a queda do muro, o colapso do apartheid na África do Sul, a aparente paz de 93 com os acordos de Oslo entre israelenses e palestinos. Não foi assim, mas algumas coisas positivas aconteceram: estou pensando, por exemplo, na vitória definitiva da democracia na América Latina. Por isso, devemos continuar a sonhar o sonho romano. Um governo mundial, paz universal: esse é o verdadeiro mito de Roma.