O verão chegou ao Hemisfério Norte: a ordem do dia é cair na farra
Os jovens, isolados por tanto tempo e agora vacinados, partem para a balada com ânimo renovado, típico de momentos que sucedem às grandes crises
A Paris dos anos 1920 virou um luminoso cartão-postal da euforia que se seguiu aos tempos sombrios da I Guerra Mundial e da gripe espanhola, período que abateu toda uma juventude — a Geração Perdida, como se referiu a ela, em seu Paris É uma Festa, o escritor americano Ernest Hemingway, que ali viveu intensamente quando tudo voltava a fervilhar. As feridas recentes, as prolongadas privações e a ideia de que nunca fora tão vital aproveitar o aqui e agora marcaram uma época em que as vanguardas reviraram a arte do avesso e os cafés eram o vibrante cenário de uma sociedade que avançava a passos largos. Os Loucos Anos 20, como entraram para a história, compõem um padrão que o sociólogo americano Nicholas Christakis, da Universidade Yale, descreve em seu recém-lançado Flecha de Apolo: O Impacto Profundo e Duradouro do Coronavírus na Maneira como Vivemos, no qual tece uma reflexão sobre os desdobramentos da pandemia: “Traumas coletivos, como pestes e guerras, costumam ser sucedidos por um forte movimento de retomada da vida, gerando progresso, como deve ocorrer neste caso”, falou a VEJA.
Nas últimas semanas, a tendência humana a dar vazão ao alívio e festejar se pronunciou em grandes cidades dos Estados Unidos e da Europa, onde o arrefecimento nas curvas de contágio e mortes por Covid-19 e a expansão dos vacinados vêm alimentando um otimismo, especialmente entre os jovens, que são menos dados a calcular riscos e querem extrair o máximo deste verão. Com ou sem máscara no rosto, a depender da metrópole, eles têm lotado restaurantes, bares e boates agora abertos, mesmo que com novas regras, para lá de necessárias num momento em que a praga da vez ainda não foi debelada. No Reino Unido, a temporada das baladas estreou oficialmente em 19 de julho — logo apelidada de Freedom Day (o dia da liberdade) — com a volta à ativa de espaços de lazer e o fim da limitação de pessoas em shows e eventos esportivos. Era tamanha a ansiedade pelo gostinho de retorno à normalidade que, horas antes de os ponteiros cravarem a meia-noite daquele 19 de julho, multidões se enfileiravam em frente aos pubs. “Todo mundo quer dançar, reencontrar amigos e conhecer gente”, resume a inglesa Amelia Kaye, 24 anos, que engatou em uma programação frenética.
O que se observa no Hemisfério Norte faz parte de um mecanismo humano que a psicologia já descreveu: quanto maior a privação, mais intensa a urgência em supri-la. “A juventude é uma etapa de busca incessante da liberdade, da experimentação, mas isso ficou em suspenso e, agora, vê-se uma verdadeira corrida pelo tempo perdido”, ressalta o psicólogo Marcelo Santos, da Universidade Mackenzie. O modo acelerado dos jovens nessa direção embute um componente hedonista — da procura constante pelo prazer extremo à negação do que causa dor. “Do ponto de vista da filosofia de Platão, perseguir o prazer a todo custo pode ofuscar o bom senso, criando uma espécie de cegueira diante da realidade”, pontua o cientista social Paulo Ramirez. Pois se por um lado os dados da pandemia já permitem enxergar uma porta de saída, de outro eles sinalizam que não dá para baixar a guarda. Especialistas andam preocupados sobretudo com a ultracontagiosa variante Delta. O próprio prefeito de Nova York, Bill de Blasio, que promete para 21 de agosto um mega-show gratuito com nomes como Bruce Springsteen em pleno Central Park — uma das atrações de “O VERÃO DE MANHATTAN” (com letras maiúsculas) —, voltou a recomendar, por precaução, o uso de máscara em locais fechados.
Para uma parcela da juventude, um dos escaninhos deixados vazios pelo isolamento foi o dos relacionamentos, o que fez emergir uma onda de solidão, ansiedade e, por vezes, depressão. É natural que, com a reabertura, os hormônios voltem a tomar as rédeas. Segundo uma pesquisa realizada pelo aplicativo de namoros Bumble, sete em cada dez solteiros londrinos (65% deles plenamente imunizados) comparecem a até quatro encontros semanais, enquanto a venda de camisinhas dispara e “festas-fetiche” recebem convidados em trajes íntimos por toda a cidade. Em Barcelona, o botellón, costume de beber e celebrar na rua, regressou com força total, mesmo com a norma que impede a circulação entre 1 e 6 da manhã. “Já tomei as duas doses da vacina e estou aproveitando o clima de normalidade”, entusiasma-se a brasileira Nayara da Silva, 28 anos, que mora na Irlanda e resolveu passar as férias na Catalunha.
O passaporte sanitário, documento que atesta se a pessoa foi vacinada, deu gás à balada, embora uma turma jovem veja a medida como uma invasão na vida privada. Há os que preferem apresentar um exame negativo para o novo coronavírus. De todo modo, são ferramentas imprescindíveis para garantir a segurança na cena noturna de centros como Berlim, agitado pelos clubes de música eletrônica em torno da estação Warschauer Straße, e Paris, onde em cafés, bares e danceterias é difícil arrumar cadeira e ingresso. Após um ano e meio de pandemia, Manhattan experimentou uma transformação demográfica, em que uma fatia da população mais velha foi se mudando para cidades menores e os jovens, atraídos justamente pelo oposto, ficaram, alugaram imóveis a preços mais baixos, matricularam-se na universidade (a procura subiu até 50%), trocam beijos de montão e perambulam com shorts de cintura baixa deixando o umbigo à mostra. O Central Park, a “praia” da Big Apple, é palco hoje de um verão diferente.
Muitas sociedades em diversos tempos emergiram de longas crises propensas a ir em busca da genuína felicidade e mais dispostas a assumir riscos. O fim da quarentena imposta pela letal peste negra do século XIV foi celebrado, segundo historiadores, com “fornicação selvagem” e “alegria histérica”, ao mesmo tempo que tornou os europeus mais aventureiros, dando impulso às grandes navegações. No Brasil, o animadíssimo Carnaval carioca de 1919, pós-gripe espanhola, foi assim descrito por um cronista da época: “A alegria transbordou triunfalmente, como uma enorme vingança da vida imortal contra os horrores que a quiseram escurecer”. É este o espírito que o sociólogo Christakis, de Yale, enuncia em seu livro, fazendo a ressalva: “Ainda precisamos aguardar um pouco para ver se desenrolar o ciclo completo da euforia e do avanço”. Quanto maior a espera, mais doce será o beijo.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750