O vírus à solta: escalada da Covid na Índia repercute em todo o planeta
O governo chegou a celebrar. Mas logo veio uma segunda onda agravada pela falta de itens básicos nos hospitais e doentes à deriva nas ruas
Nas suas incansáveis idas e vindas pelo planeta, o novo coronavírus, inimigo insidioso da humanidade, continua a exigir aprendizado permanente. A Índia, com seu 1,4 bilhão de habitantes, cidades apinhadas e precárias condições de higiene, seria alvo natural da pandemia. E, no entanto, escapou com poucos danos da primeira onda, no ano passado. Em janeiro de 2021, discursando no Fórum Econômico Mundial, o primeiro-ministro Narendra Modi, louvado por seu partido como o visionário que derrotou a Covid-19, derramou-se em elogios às medidas de seu governo que teriam blindado a população de uma catástrofe. Em março, o país registrava 13 000 novos casos da doença por dia, menos que a Alemanha e a França. Agora, a conta chegou em ritmo devastador, com espantosos 350 000 casos confirmados por dia, um quarto do total mundial. Na quarta-feira 28, eram 18 milhões de contágios e mais de 200 000 mortes, e os números subiam em ritmo acelerado — isso, na contabilidade oficial, que se supõe altamente deficitária.
A capital, Nova Délhi, e outras grandes cidades padecem de falta de leitos e de estoques de oxigênio e medicamentos básicos nos hospitais e em atendimentos de emergência montados em estações de trem e hotéis. Nos crematórios, para onde são levados os mortos da maioria hinduísta, as filas podem se esticar por dias e muitos estão depositando os corpos de familiares em piras improvisadas próximo de suas casas. A fumaça que encobre as margens do sagrado Rio Ganges é uma manifestação sombria da tragédia.
O desemprego nos centros urbanos ao longo do ano passado levou multidões de volta a suas raízes, carregando consigo o vírus. Resultado: estados predominantemente rurais, pouco atingidos na primeira onda, agora são focos de contágio. “Neles a subnotificação é a prática, pois a população não dispõe nem de infraestrutura nem de disposição para participar da coleta de dados necessária”, diz Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco político Eurasia Group. Uma pesquisa sorológica nacional feita em dezembro concluiu que 21% dos indianos tinham anticorpos — muito acima do 1% oficial, e especialistas acreditam que o número de mortos por Covid-19 seja até trinta vezes maior do que o divulgado. “É verdade que as autoridades investiram em ampliação de hospitais, mas a medida, vistosa, não faz sentido quando não há oxigênio ou remédios para dar utilidade aos novos leitos”, critica o médico indiano Srinivas Murthy, professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá.
A Índia implantou uma das quarentenas mais duras do mundo no início da pandemia e as imagens de policiais brandindo cassetetes contra desobedientes viralizaram nas redes sociais. Mas durou pouco — com eleições à vista e crenças duvidosas, como a de que, por ser um país jovem, estava menos vulnerável à pandemia, o governo foi relaxando nas restrições. Movido pelo ultranacionalismo hindu, Modi optou por não cancelar o Kumbh Mela, um gigantesco festival que levou mais de 3,5 milhões de peregrinos em março para a cidade de Haridwar, no estado de Uttarakhand. O resultado, como esperado, veio rápido: em abril, o número de testes positivos na região cresceu sete vezes. Há indícios de que uma nova variante do vírus, chamada “mutante dupla” e mais violenta do que as demais, possa estar acelerando a contaminação.
Fabricante de 60% das vacinas do planeta, a Índia se tornou fornecedora de meio mundo e ainda aproveitou para se firmar como potência regional, distribuindo doses grátis a vizinhos mais necessitados. Ao mesmo tempo, lançou uma vasta campanha de imunização interna. Mas as dificuldades de acesso a algumas regiões, a burocracia e a desconfiança de uma parcela da população emperraram a vacinação — nem 2% receberam as duas doses até agora. Diante do ritmo alucinante de novos contágios, o governo indiano decidiu “calibrar” as exportações para mais de setenta países (parte da África, que mal começara a imunização, voltou à estaca zero). “Vamos atender à demanda internacional quando ela não comprometer as necessidades do nosso país”, avisou Adar Poonawalla, CEO da maior fábrica de vacinas, o Instituto Serum.
Vários países e a própria Organização Mundial da Saúde se mobilizaram para atenuar a tragédia indiana, como o Reino Unido, a Alemanha, a França e outros, enviando respiradores e geradores de oxigênio, e os Estados Unidos suspendendo a proibição de exportar insumos básicos para a produção de imunizantes. O governo Biden também planeja abrir mão de 60 milhões de doses da vacina Oxford-AstraZeneca em suas mãos, aliviando a pressão sobre o Instituto Serum. A partir de 1º de maio, o governo pretende ter estoques suficientes para ampliar a vacinação para toda a população acima de 18 anos. É uma corrida contra o tempo em um país de dimensões continentais e infraestrutura precária, onde o drama tem tudo para piorar antes de começar a melhorar.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736