O vírus do racismo chocou os Estados Unidos e o Brasil em 2020
A chaga do preconceito racial, cada vez mais exposta entre os americanos, costuma ser encoberta com requentados subterfúgios por aqui
Não bastasse a pandemia, o racismo despejou seu fel com chocante vigor nestes meses difíceis. Em maio, em Minneapolis, norte dos Estados Unidos, o negro George Floyd, 40 anos, passou mais de oito minutos deitado no asfalto, diante de testemunhas, com o joelho do policial branco Derek Chauvin pressionando seu pescoço. “Não consigo respirar”, repetia, ofegante. “Ele vai morrer”, angustiavam-se as pessoas em volta, de celular a postos. Floyd morreu por asfixia e o crime desencadeou a maior onda de protestos contra o racismo no país em mais de meio século. No pano de fundo da grita encabeçada pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) está a contumaz violência da polícia contra negros, retratada em sequência, uma após outra, Estados Unidos afora, nesses tempos em que nada passa incólume pelas câmeras dos smartphones. Marchas gigantes, confrontadas por milícias direitistas empenhadas em apoiar as forças da ordem, incendiaram as grandes cidades americanas. Quatro policiais foram exonerados e indiciados, Chauvin sob a acusação de homicídio culposo. O julgamento está marcado para começar em março, enquanto projetos de reformulação das polícias são examinados em todo o país.
A chaga do preconceito racial, latente e cada vez mais exposta entre os americanos, costuma ser encoberta com requentados subterfúgios de cunho cultural e econômico no Brasil, embora todos os indicadores confirmem que, também aqui, negros são mais maltratados do que brancos. Na véspera do feriado da Consciência Negra, em novembro, porém, em um supermercado de Porto Alegre, a reprise da barbárie americana chacoalhou a apatia: o negro João Alberto Freitas, também de 40 anos, foi perseguido, espancado e submetido ao joelho no pescoço por dois seguranças da loja, incentivados por uma funcionária, na frente de gente que filmava e pedia insistentemente que parassem. Não pararam, e João Alberto morreu, o que desencadeou manifestações e pedidos de providências por todo o país. Seis pessoas envolvidas foram presas. Puni-las é imprescindível, é claro, mas essencial mesmo é achar uma forma de erradicar esse outro — tristíssimo — vírus da face da Terra.
Publicado em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719