Olimpíada de Inverno será vitrine das ambições globais da China
Mesmo boicotado por vários governos (mas não pelos atletas), evento em Pequim vai servir para firmar a imagem do país como potência no topo do pódio mundial
Mesmo boicotado por vários governos (mas não pelos atletas), o espetáculo dos esportes vai servir para firmar a imagem da China como potência no topo do pódio mundial
Poucas vitrines são tão simpáticas e positivas para uma cidade quanto sediar uma Olimpíada e ter as atenções do planeta voltadas para estádios monumentais, atletas em busca de recordes, toques graciosos da cultura local e pontos turísticos em destaque — mesmo diante de severas restrições impostas pela pandemia. Esse é justamente o efeito que a China espera obter com a realização dos Jogos de Inverno de Pequim, entre os dias 4 e 20 de fevereiro, formatados para ser, no mínimo, uma repetição do sucesso dos Jogos de Verão, em 2008.
Naquela época, o país experimentava taxas de crescimento de dois dígitos e queria exibir o resultado de seu milagre econômico. Desta vez, a ambição vai mais longe: o governo chinês quer subir no alto do pódio de organização impecável, conquistar medalhas a rodo e firmar posição como uma nação que o resto do mundo admira e deseja imitar. “Em 2022, a China planeja provar que não é mais só a fábrica de produtos do mundo. É a superpotência do século XXI”, diz Lee Jung-woo, especialista em diplomacia esportiva e relações internacionais da Universidade de Edimburgo.
Historicamente fechada em si mesma e sem traquejo para dourar a imagem no ambiente global, a China agarra todas as oportunidades para desenvolver seu soft power, aquela elusiva capacidade de fazer amigos e influenciar estrangeiros sem apelar para a força. A Olimpíada de Inverno se encaixa aí como uma luva e nenhum esforço foi poupado para preparar o cenário onde 2 892 atletas vão disputar 109 medalhas, distribuídas em sete modalidades esportivas. Quase 4 bilhões de dólares foram investidos para adaptar a natureza às necessidades esportivas, o que incluiu a instalação de canhões de neve artificial em série, tanto em Pequim quanto em Zhangjiakou, a 180 quilômetros da capital chinesa, palco das competições em encostas. Governos locais recrutaram milhares de estudantes talentosos para escolas especiais, onde o treinamento intensivo faz parte do currículo. Até o turismo de inverno, antes incipiente, explodiu: de onze resorts de esqui em 1996, o país passou hoje para 646, movimentando um mercado de 4 bilhões de dólares por ano, 480% a mais do que em 2015. Por causa da pandemia, os atletas permanecerão em bolhas das quais só sairão para competir e o público vai se restringir a quem já estiver em Pequim quando o espetáculo começar, todos testados e vacinados.
Seria uma chance e tanto de encantar os outros povos — não fosse a mão pesada do governo para lidar com tudo o que considera do contra. Daí o perrengue pelo qual vem passando desde que a tenista aposentada Peng Shuai, 35 anos, duas vezes vencedora em duplas do Grand Slam, deixou de aparecer em público depois de postar no Weibo, o Twitter chinês, em novembro, que no topo da carreira foi coagida a fazer sexo com o então vice-primeiro-ministro Zhang Gaoli. A máquina da censura entrou em ação, sumindo com qualquer menção a Peng. A Associação de Tênis Feminino suspendeu os torneios na China e ameaçou se retirar da Olimpíada. A tenista manteve desde então conversas por vídeo com dirigentes esportivos, em que disse estar bem e, em uma entrevista, se considerou “mal interpretada”, mas as dúvidas permanecem.
Outra questão espinhosa é o tratamento à minoria muçulmana uigur na longínqua província de Xinjiang, que Pequim, tentando se vacinar contra extremismos, submete a campos de reeducação e controle do número de filhos. Por essas e outras, Estados Unidos, Reino Unido e diversos países anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno. Os atletas vão, mas os governos do boicote não mandarão delegação (o russo Vladimir Putin, ao contrário, fez questão de confirmar presença, em um encontro virtual com Xi Jinping cheio de rapapés). Não há soft power que resista à truculência explícita de Pequim — nem contando com um exército de blogueiros estrangeiros contratados para falar bem do país, como se revelou recentemente. “Quanto mais a face sombria do Partido Comunista fica conhecida, mais a opinião pública global se assusta”, diz Natasha Kassam, especialista em relações internacionais do Instituto Lowy, de Sydney.
Uma diferença marcante desta Olimpíada, em relação à anterior, é a extensão da rivalidade com os Estados Unidos. Desde o governo Trump que os dois países trocam farpas, disputam primazia em órgãos multilaterais e impõem barreiras tarifárias um ao outro. Na visão chinesa, “o Oriente está decolando e o Ocidente, em declínio”, uma postura arrogante que aumenta a temperatura de batalhas sobre quem pode mais em terrenos cruciais da economia do futuro, como inteligência artificial, internet 5G e tecnologia espacial. Em 2021, o PIB chinês chegou pela primeira vez a 15 trilhões de dólares (veja o gráfico), o equivalente a 75% do americano, e seu ritmo de avanço dá aval à promessa do presidente Xi Jinping de ter a maior economia do planeta até o fim desta década. A contrapartida do presidente Joe Biden tem sido dirigir bilhões de dólares para o avanço dessas indústrias de ponta dentro do território americano, em vez de terceirizadas em outros países.
A Ilha de Taiwan é mais um ponto de atrito. Refúgio do governo derrotado por Mao Tsé-tung, que lá se instalou, Taiwan é umbilicalmente ligada desde então aos Estados Unidos, que lhe fornecem inclusive armamentos e assessoria militar. O presidente Xi não esconde seu intuito de fincar a ilha firmemente na sua órbita, “pacificamente”, até o fim da década, e, apesar dos alardeados bons propósitos, vira e mexe organiza pouco sutis exercícios militares no seu entorno. “A estratégia de Pequim é manter uma atmosfera de coerção e intimidação”, diz Yun Sun, especialista em estudos chineses do Centro Stimson, de Washington. A força militar chinesa tem igualmente se esparramado pelo Mar do Sul da China, arrepiando Austrália e Japão. O Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) calcula que Pequim mantenha naquelas águas, onde há reservas abundantes de petróleo e gás e por onde circula um terço do comércio marítimo mundial, ao menos 300 navios de patrulha.
Enquanto administra focos de tensão no seu quintal, a China trata de consolidar sua influência nos países vizinhos, que hoje têm sua economia entranhada na do gigante oriental, ao mesmo tempo que amarra alianças injetando bilhões de dólares em projetos de infraestrutura e distribuindo milhões de doses de vacina contra a Covid-19 na África e na América Latina. Com dinheiro de sobra, demanda frenética por commodities e tecnologia de ponta para dar e vender, Xi Jinping é cortejado por presidentes à esquerda e à direita no bloco menos desenvolvido do mundo ocidental. Tê-lo como parceiro é compulsório. Em 2022, o ano do tigre, o que se espera da China é que dê saltos cada vez mais ousados, a começar do gelo da Olimpíada.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771