Castigados por cinco eleições parlamentares inconclusivas em três anos, os israelenses elegeram em novembro passado um governo como nunca se viu antes no país de tradição liberal e moderna: da coalizão vencedora, liderada pelo Likud de Benjamin Netanyahu, fazia parte, com força para ditar rumos e definir votações, um punhado de partidos ultrarreacionários, muitos deles com viés religioso, que até então viviam nas bordas do espectro político. Unidos em dois blocos, os novos aliados de Netanyahu não escondem sua intenção de legitimar e espalhar assentamentos na Cisjordânia, facilitar e estimular a repressão dos palestinos e, na tacada mais controversa, impor limites radicais à autonomia do Judiciário — este, um projeto especialmente caro ao primeiro-ministro, que está sendo julgado por corrupção.
Vendo aí — com razão — uma séria ameaça à posição de Israel de única democracia de fato do Oriente Médio, a oposição convocou a população a protestar, e manifestações ocuparam praças e ruas de Tel Aviv e Jerusalém. Que força teriam, no entanto, os manifestantes para frear a reforma? Resposta: a força do jogo democrático levado a sério. No dia da votação da primeira parte do projeto, setores influentes da sociedade civil, acompanhados de uma ala das Forças Armadas, fizeram sentir o peso de sua rejeição à mudança do sistema e o governo, acuado, adiou o processo.
O fator decisivo para a virada foi a adesão ao movimento antirreforma de reservistas, sobretudo da Força Aérea, que passaram a descumprir ordens de se apresentar para treinamento obrigatório. Ao que tudo indica, parte dos militares não aceita o risco de um Executivo como o atual à vontade para tomar atitudes sem o freio da Suprema Corte. Diante da debandada, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, pediu a retirada da proposta, por ver nela uma “ameaça à segurança nacional”. Foi sumariamente demitido — e o caldo entornou. Da noite para o dia, multidões tomaram as ruas das principais cidades sob jatos d’água e bombas de efeito moral da polícia, universidades e aeroportos fecharam as portas e o principal sindicato do país decretou greve geral. Diante da comoção, Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional e líder de um dos blocos do governo, anunciou que seu grupo aceitaria adiar a votação da reforma para depois do recesso da Páscoa judaica, que vai até 30 de abril. Foi a senha para Netanyahu anunciar oficialmente o adiamento, para evitar uma “ruptura entre nosso povo”.
Israel não tem Constituição escrita, nem separação entre Legislativo e Executivo — o primeiro-ministro controla a maioria do Parlamento unicameral. Nesse cenário, a Suprema Corte atua como um poder moderador no qual os juízes têm a função de proteger os direitos básicos dos cidadãos. O pacote apresentado pelo governo Netanyahu, sob a alegação de que está na hora de reduzir a ingerência e os “abusos” de servidores não eleitos nos rumos da nação, impede que o tribunal anule decisões do Parlamento e ainda dá aos deputados o poder de indicar seus integrantes. Para a presidente da Suprema Corte, Esther Hayut, a reforma colocaria Israel à beira da autocracia. “O Judiciário é o único sistema de freios e contrapesos do país, essencial para a manutenção do estado de direito”, diz Ronen Mandelkern, professor da Universidade de Tel Aviv.
A ascensão da ultradireita pelo mundo tem transformado os tribunais da mais alta instância em uma espécie de trincheira do estado de direito (caso, inclusive, do Supremo Tribunal Federal na era Bolsonaro) e, consequentemente, em alvo preferencial de políticos interessados em atropelar as leis. “Limitar seu poder é o modus operandi para criar o que conhecemos como democracia iliberal, e já aconteceu na Hungria e na Polônia”, diz Yehuda Shaul, do instituto Ofek.
O adiamento da votação para maio dá ao governo mais tempo para tentar uma negociação — que já foi iniciada, sob a mediação do presidente Isaac Herzog. Os Estados Unidos, aliados cruciais de Israel, pressionam pela retirada do projeto. “Eles não podem continuar nesse caminho e eu deixei isso bem claro”, disse o presidente americano Joe Biden, em um incomum puxão de orelha em público. “Israel é uma nação soberana que toma decisões baseadas no desejo de seu povo”, rebateu Netanyahu. O primeiro-ministro segue refém dos ultraconservadores, donos dos seis votos que lhe dão maioria, e Ben-Gvir, ao aceitar o adiamento, reiterou que “ninguém põe medo em nós” e que a reforma será aprovada. Por um momento, a democracia provou sua força em Israel, mas a previsão é de muito tumulto ainda pela frente.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835