Ao longo da última década, mais de uma centena de mulheres apresentaram-se como vítimas do predador serial Jeffrey Epstein, milionário investidor americano frequentador das altas rodas da sociedade e da política, que tinha confessada predileção por meninas bem novinhas e um segredo mal guardado: ele as aliciava com promessas de fama e dinheiro para desfrute sexual seu e dos amigos. Epstein foi finalmente preso em Nova York, em 2019, mas, privando as acusadoras da esperada desforra, enforcou-se um mês depois na cadeia. Faltando dois dias para 2021 acabar, elas enfim puderam sentir o gosto da vingança: julgada em um tribunal de Manhattan, a britânica Ghislaine Maxwell, durante trinta anos companheira constante e braço direito do milionário na sua vida privada — aí incluídos os atos de assédio —, foi declarada culpada de cinco entre seis acusações, incluindo a mais grave, de tráfico de menores de idade.
A sentença não tem data para ser definida e Ghislaine, que completou 60 anos no dia do Natal, pode pegar até 65 anos de prisão (está detida desde julho de 2020). É dado como certo que irá recorrer e, como último recurso, pode negociar uma delação premiada para reduzir a pena. É diante dessa possibilidade que vários poderosos tremem, sendo o mais tiritante deles o príncipe Andrew, terceiro filho da rainha Elizabeth, que privou seguidamente das mordomias oferecidas por Epstein e é alvo de outro processo sobre o alcance dessa amizade. “Até aqui, ela não demonstrou interesse em cooperar. Mas isso pode mudar diante de uma pena severa”, diz a advogada Neama Rahmani, especialista em direito criminal.
Ghislaine foi julgada e condenada em um mês graças à estratégia adotada pela acusação: para não sobrecarregar os doze jurados de detalhes, a promotoria se concentrou no depoimento de quatro mulheres, vítimas de Epstein entre 1990 e 2000, quando eram adolescentes. Elas relataram como foram atraídas por Ghislaine para “sessões de massagem” — eufemismo para atos sexuais — na casa de Epstein. Ganhavam 300 dólares e voltavam, por medo, por fascínio pelos presentes caros que recebiam e pela confiança na promessa de que aquele homem rico e conectado iria cuidar de seus estudos e de suas carreiras. Segundo elas, Ghislaine se fazia de amiga, as instruía sobre os gostos do predador e, às vezes, participava das orgias.
As quatro testemunhas descreveram com detalhes como vieram a conhecer a dupla, sempre por meio de um primeiro encontro casual com Ghislaine, e como participaram de encontros sexuais, até duas ou três vezes por semana, durante anos. Ghislaine as estimulava a convencer amigas a também comparecer às sessões de sexo, na qual ora ficavam sozinhas com Epstein, ora se engajavam em atos com ele e várias outras mulheres. Em um dos depoimentos de maior impacto, Carolyn (identificada apenas pelo primeiro nome), recrutada aos 14 anos, contou que estava nua em uma sala quando Ghislaine entrou. “Tocou nos meus seios, quadris e nádegas e disse que eu tinha um ótimo corpo para Epstein e seus amigos”, relatou. Um piloto do jato particular do milionário — apelidado pelos tabloides de “Lolita Express” —, Larry Visoski, confirmou que transportou tanto adolescentes quanto convidados ilustres, entre eles o ex-presidente Bill Clinton e o príncipe Andrew. Afirmou, no entanto, jamais haver presenciado atos impróprios dentro do avião.
Clinton era frequentador das caronas aéreas e das casas de Epstein — na mansão em Nova York, a polícia encontrou um quadro bizarro em que o rosto do ex-presidente aparece em corpo de mulher, refestelado em uma poltrona. Durante anos, o milionário, que morava parte do tempo na Flórida, também trocou figurinhas com Donald Trump, tornando-se assíduo frequentador de Mar-a-Lago, o clube-condomínio do então espalhafatoso empresário do setor imobiliário. Trump chegou a fazer piada com a predileção de Epstein por menininhas — até ele ser banido das festas por assediar uma menor de idade. Entre os muitos poderosos do convívio do investidor esteve ainda Bill Gates, que alega haver tratado com ele apenas de doações filantrópicas.
Bem antes de se ligar a Epstein, Ghislaine já frequentava as mais altas rodas dos Estados Unidos e do Reino Unido. Nascida em berço de ouro, é filha de Robert Maxwell, judeu que escapou da pobreza e da perseguição nazista na antiga Checoslováquia para erguer um império de mídia em Londres e se tornar político pelo Partido Trabalhista, até, falido, se suicidar, em 1991. Ghislaine era sua preferida entre os nove filhos e ele chegou a tentar uni-la a John Kennedy Jr. (1960-1999), então um dos solteiros mais cobiçados dos Estados Unidos. A mansão da família em Oxford era frequentada por políticos, celebridades e ricaços, colocando Ghislaine em uma privilegiadíssima posição social, que lhe permitiu estabelecer amizades com aristocratas como Andrew — que hoje, por causa desses contatos, amarga o ostracismo em um recanto do Castelo de Windsor, impedido de participar das atividades reais.
Até o fim deste ano, o mesmo tribunal nova-iorquino onde Ghislaine foi julgada vai debater a ação movida contra o príncipe pela mais vocal das vítimas de Epstein, a americana Virginia Roberts Giuffre. Primeira a trazer a público as barbaridades praticadas pelo milionário, ela — que aparece em uma célebre foto com Andrew, o braço dele em volta de sua cintura, e Ghislaine ao fundo — abriu um processo cível (que prevê indenização, e não prisão) em que afirma ter sido forçada a fazer sexo com o príncipe diversas vezes e que os abusos começaram quando tinha 17 anos. O caso acaba de ganhar novo capítulo após o tribunal ter concordado em quebrar o sigilo de um acordo legal firmado entre Epstein e Virginia em 2009. Pelo acerto, ela recebeu 500 000 dólares em troca de “liberar, absolver e dispensar para sempre” não só Epstein, como também “qualquer outra pessoa ou entidade que possa ser incluída como réu potencial”. Andrew não foi mencionado no antigo processo, mas sua defesa alega que os termos do acordo impedem Virginia de mover a atual ação e pedem seu arquivamento. “Para evitar ser arrastado para futuras disputas legais, Epstein negociou essa ampla liberação, insistindo que abrangesse todas as pessoas potencialmente alvo de futuras ações”, afirmou Andrew Brettler, advogado do príncipe.
A decisão está nas mãos do juiz. Seja qual for, apelar para esse artifício para suspender a ação contra Andrew só reforça a impressão de que ele tem culpa no cartório. O julgamento de Ghislaine tem potencial para complicar a situação, às vésperas da festa dos 70 anos de reinado de Elizabeth, em fevereiro, ao haver exposto o grau de proximidade entre o filho da rainha e o casal. Fotos e relatórios de voo comprovam que Epstein e Ghislaine estiveram na comemoração dos 40 anos de Andrew, em junho de 2000, uma festinha para íntimos no Castelo de Windsor. Os dois também passaram dias no Castelo de Balmoral, na Escócia, e foram fotografados em pavilhões de caça privativos de Elizabeth e família. Os regimentos militares em que Andrew serviu (ele foi um piloto condecorado na Guerra das Falklands) estão pedindo seu afastamento e fala-se até na possibilidade de que perca o título de duque de York. Só falta agora Ghislaine — detenta amargurada que recebeu na cadeia um tenso telefonema do marido, Scott Borgerson, informando que estava “partindo para outra” com uma instrutora de ioga — resolver contar o que sabe.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771