Apesar do ostensivo aparato policial e das prisões preventivas em massa de oposicionistas nos dias anteriores, o discurso anual à nação do presidente russo Vladimir Putin foi acompanhado pelo som de protestos nas ruas de cidades por todo o país exigindo a libertação do opositor Alexei Navalny — a maior dor de cabeça do dirigente russo hoje, mesmo estando isolado em um presídio de segurança máxima. Navalny, no entanto, não foi mencionado por Putin (que, de resto, em pouquíssimas ocasiões proferiu seu nome). O presidente dedicou boa parte do pronunciamento a falar grosso com o exterior — um recado ao presidente Joe Biden, que o chamou de “matador” e impôs sanções à Rússia. “Não queremos queimar pontes, mas, se alguém interpretar nossas boas intenções como indiferença ou fraqueza e tentar explodir as pontes, a resposta russa será desproporcional, rápida e dura”, disparou. “Ninguém cruza a linha vermelha da Rússia; e somos nós que determinamos seu traçado.”
O tom de bravata foi recebido até com certo alívio — previa-se que Putin sugeriria no discurso a disposição de apertar a pressão sobre a Ucrânia, país com o qual vive em pé de guerra pela posse de uma província e para cuja fronteira despachou tanques, armas e 100 000 soldados nas últimas semanas. Por causa de Navalny, da Ucrânia e das evidências de interferência russa nas eleições americanas, Biden expulsou doze diplomatas da Rússia e proibiu algumas operações financeiras entre os dois países, no que foi rebatido por medidas semelhantes de Moscou. “Trata-se de um exercício simbólico. Sanções sobre pessoas e companhias são basicamente irrelevantes”, diz Agathe Demarais, diretora de análises globais da The Economist Intelligence Unit. Ficou clara, no entanto, a mensagem de Biden: seu governo não será como o de Donald Trump, que nutria declarada admiração pelo durão Putin.
A maior parcela do discurso do presidente à nação tratou de angariar simpatias no plano interno, reconhecendo que o novo coronavírus dificultou a vida da população e prometendo investimentos em ações sociais. Embora ainda seja popular, Putin vem perdendo aprovação com os percalços da pandemia e com o crescente barulho da oposição, unificada em torno de Navalny. Mesmo preso, o rival usa os advogados e as redes sociais de apoiadores para se manifestar. Doente na cadeia — ele se recupera de uma escandalosa tentativa de envenenamento por um agente químico exclusivo do Exército — e em greve de fome há três semanas, escreveu recentemente: “Se me vissem, ririam. Sou um esqueleto ambulante, balançando pela cela”. Desde então, foi transferido para uma enfermaria. Na hora do discurso de Putin em Moscou, apoiadores de Navalny, convocados pelas redes sociais, promoveram manifestações em mais de vinte cidades, onde as praças estavam cercadas por tanques e a polícia prendeu 300 pessoas só na primeira hora de protestos. O movimento oposicionista alerta que a Fundação Anticorrupção, fundada por Navalny, pode ser fechada a qualquer momento.
Em um telefonema a Putin após o anúncio das sanções, Biden propôs a realização de um encontro entre os dois para “normalizar relações”. “Se acontecer, é bom não esperar grandes gestos, porque os dois lados têm disputas fundamentais que impedem avanços”, alerta Yang Jin, pesquisador do Instituto de Estudos Russos e do Leste Europeu, da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Quatro décadas depois de encerrada a Guerra Fria e com uma nova potência — a China — no horizonte, a situação atual mostra que, tirando o interregno do período de Trump, Estados Unidos e Rússia continuam a não se bicar.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735