Um dos mais movimentados do mundo, o aeroporto internacional de Hong Kong é cartão-postal de uma ilha pujante, capaz de atrair gente de toda parte para fazer negócios, facilitados por um sistema financeiro altamente globalizado e livre de amarras. Nos últimos dias, porém, o lugar virou o epicentro de uma onda de protestos que sacode desde junho o próspero naco do território chinês, e sobe de tom. Milhares de manifestantes tomaram o aeroporto na sexta 9, levando à paralisação dos voos por dois dias e provocando uma escalada da violência policial. Muitos dos insurgentes usavam tapa-olhos, em alusão a uma mulher ferida em confronto com as forças de segurança. Na quarta-feira 14, os pousos e decolagens haviam se normalizado, mas a turbulência em Hong Kong, onde a população briga para manter liberdades democráticas ameaçadas pelo poder central em Pequim, estava longe do fim. O governo, liderado por Xi Jinping, fez circular um vídeo com imagens de tanques enfileirados na cidade de Shenzhen, 30 quilômetros ao norte do aeroporto internacional.
Especulações e cenários começaram imediatamente a ser traçados e existe razoável consenso, pelo menos por ora, de que uma intervenção militar é pouco provável, ainda que paire no ar, silenciosamente, assustadoramente, o medo de uma reação como a da Praça da Paz Celestial, em Pequim, daquele triste 1989. “Os soldados e tanques não seriam muito úteis na prática. Afinal, os manifestantes estão espalhados por toda a ilha, como uma guerrilha não armada”, diz o cientista político Baldwin Wong, da Universidade Chinesa de Hong Kong. A artilharia que mira o “território semiautônomo” soa mais como uma forma de intimidação. O porta-voz do Ministério da Defesa definiu o comportamento dos insurgentes como “radical” e “intolerável”. Os protestos, que já configuram a maior manifestação popular na China desde o fim dos anos 1980, foram comparados a atos de “terrorismo”.
O jogo é complicado. Sob administração britânica até 1997, Hong Kong passou às mãos da China comunista com o slogan “um país, dois sistemas”, o que lhe garante certa autonomia, como ter um Judiciário e um conjunto de leis próprios. Mas o comando da ilha (a diretoria executiva, diz-se por lá), há dois anos a cargo de Carrie Lam, precisa do crivo do governo baseado na China continental, que também se assegura de que o Legislativo seja favorável ao poder central. Alinhadíssima com Jinping, Lam é vista por uma grande parcela da população como “marionete de Pequim”. E assim tem se apresentado mesmo, inclusive ao engrossar o coro das intimidações. “A violência leva a um caminho sem volta”, disse ela sobre o recrudescimento das manifestações. Esse tipo de aceno só vem aumentar a fervura em um caldeirão historicamente em permanente estado de ebulição. Enquanto o poder fincado no continente martela que são todos chineses, boa parte do povo da ilha rebelde se diz “honconguense”.
A tensão desta vez teve como gatilho uma tentativa de Lam de passar um projeto de lei para facilitar as extradições — inclusive para a China continental —, o que foi interpretado como um atalho para entregar dissidentes políticos ao sistema judiciário do governo central. Diante da grita, Lam retirou de pauta o projeto, mas não deixou claro se isso seria em definitivo, o que acendeu a desconfiança geral. Além da garantia das liberdades individuais, os honconguenses querem a cabeça da chefe do Executivo, que, por motivos óbvios, Pequim optou por manter.
A polícia chefiada por Lam embruteceu depois da tomada do aeroporto, lançando bombas de gás lacrimogêneo e elevando o nível geral da violência — o que fez a ONU condená-la por agir de maneira “ilegal”, em desacordo com as normas internacionais. A polícia só deixa de agir quando lhe convém. “Fui espancado, fraturei a mão direita e levei dezoito pontos na boca, e os policiais não fizeram nada”, contou a VEJA o deputado Lam Cheuk-ting, ferido por um grupo de procedência não identificada que atacou os insurgentes. Enquanto os protestos não cessam, a alta cúpula chinesa joga xadrez. Uma repressão brutal contra o território que serve de porta de entrada para mais da metade dos investimentos do país e é sede de 1 500 multinacionais justamente por sua reputação confiável não parece um lance inteligente. O ideal para a China seria que o movimento perdesse apoio e implodisse sozinho. Até agora, não há sinal disso.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648