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Quem será o anti-Trump?

Corrida das primárias democratas começa lotada, pluralizada e com um dilema: como conciliar tradição liberal com a intransigência das questões de identidade

Por Kátia Mello e Lúcia Guimarães
Atualizado em 4 jun 2024, 15h32 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00
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  • Faltando mais de um ano para a convenção que vai consagrar o candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos na eleição de 2020, na lista de esperançosos já constam quinze nomes — e subindo. É claro que uns têm muito mais chance do que outros, e o anúncio mais recente é do time dos bem cotados: na quinta-feira 14, o ex-deputado texano Beto O’Rourke, figura que ganhou dimensão nacional ao perder por muito pouco, em novembro, uma difícil eleição para o Senado, anunciou que disputará a indicação democrata. O critério de escolha, no caso de tudo continuar como está, não guarda mistério: levará a vaga quem tiver mais possibilidade de derrotar Donald Trump, candidato certo à reeleição pelo Partido Republicano. Na prática, porém, a seleção se prenuncia complicada, devido à variação de prioridades políticas do Partido Democrata, que, na tentativa de agradar a todo mundo, não anda agradando a ninguém.

    Jovem, carismático e bonitão, O’Rourke, de 46 anos, é chamado de Barack Obama branco desde que, contra todas as previsões, quase derrotou o veterano Ted Cruz em um estado tradicionalmente republicano (o resultado foi 51% a 48%). Popular entre os jovens (48% de seu eleitorado em 2018 tinha menos de 45 anos), foi adolescente alternativo — fez parte de um coletivo de meninos fissurados em computador e tocou em bandas de rock pesado — e marca intensa presença nas redes sociais, ajudado por um exército de voluntários. Prova de sua popularidade, nas primeiras 24 horas depois do anúncio sua campanha arrecadou 6,1 milhões de dólares. Apesar da imagem moderninha, O’Rourke, em seu discurso, costuma ater-se aos preceitos liberais pregados desde sempre no Partido Democrata: igualdade de oportunidades, programas sociais, defesa do meio ambiente. Na mesma linha está Joe Biden, de 76 anos, o vice-presidente de Obama, político da velha-guarda visto com simpatia por boa parcela dos eleitores. Biden ainda nem anunciou que vai concorrer, mas é considerado o nome mais forte no momento.

    Joe Biden
    O PREFERIDO - Biden: o vice de Obama nem entrou no páreo, mas é favorito (Saul Loeb/AFP)

    O grosso do pelotão de pré-candidatos democratas, no entanto, parece favorecer uma linha de ação que, segundo os críticos, tomou conta do partido e pode lhe ser fatal em 2020: a “política de identidade”, que consiste em colocar as minorias em primeiro plano, em detrimento do sentimento coletivo. A expressão ganhou força em um artigo que Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, publicou no The New York Times semanas depois da vitória de Trump, com enorme repercussão. “O liberalismo americano enveredou por uma espécie de pânico moral em relação a raça, gênero e identidade sexual que distorce a mensagem liberal e não permite que ela se torne uma força unificadora capaz de governar”, escreveu ele, para horror dos politicamente corretos.

    Expoente dessa escola, a senadora Elizabeth Warren, loira de olhos azuis, virou piada quando declarou, toda orgulhosa, que em suas veias corria sangue índio (no que foi imediatamente apelidada por Trump de “Pocahontas”). Quando pensou em tornar-se pré-candidata, produziu um exame de DNA que confirmava a ascendência umas dez gerações para trás. Os cheroquis, sua suposta nação, chiaram e ela acabou pedindo desculpas pela “prova”. Os pré-candidatos negros, tendo à frente a senadora Kamala Harris, batem na tecla da cor, da qual Obama sempre manteve distância. A senadora Kirsten Gillibrand empunha a bandeira do feminismo. E Bernie Sanders, de 77 anos, o democrata socialista tão velho e tão simpático quanto Biden, continua a ressaltar causas de estimação, mesmo tendo afirmado, depois da derrota de Hillary Clinton em 2016, que o Partido Democrata teria de decidir se deveria “ir além da política de identidade”.

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    Dividida em panelinhas politicamente corretas, alertam os detratores da tal política, a campanha democrata perderá a visão da unidade, do conjunto. E Trump, pregando a seus convertidos sobre pátria, família, religião e bloqueio de imigrantes, continuará conquistando corações e mentes. Se de fato a falta de visão de conjunto prejudicar os democratas, eles estarão deixando escapar uma grande chance. “Há muitos eleitores para quem a prioridade número 1 é derrotar Trump. Para isso, eles se dispõem a votar em alguém que não seja seu favorito, o que é incomum”, diz Patrick Murray, diretor do Instituto de Pesquisas Eleitorais da Universidade Monmouth, em Nova Jersey.

    Trump conta com a aprovação de 90% dos que votaram nele há três anos, mas sua rejeição é alta. Entre os democratas, ele é aprovado por apenas 4%, e entre os independentes, o segmento de eleitores que mais cresce no país, sua aprovação chega a 33%. Para o analista Charles Cook, se a eleição caminhar para um referendo sobre a pessoa e o governo de Trump, os democratas sairão com vantagem. Mas se a via ideológica prevalecer entre eles, e virar com vigor para a esquerda, os republicanos ganharão pontos. Ciente disso, Trump direciona sua artilharia verbal contra o perigo vermelho em todas as ocasiões possíveis (lembra alguém?). Segundo o site FiveThirtyEight, os termos “socialismo” e “socialistas” apareceram 350% mais vezes em suas falas nos últimos três meses.

    Barack Obama e Hillary Clinton
    OUTROS TEMPOS – Obama e Hillary: a cor da pele ficou fora das campanhas (Jim Bourg/Reuters)

    Todos os analistas políticos ouvidos por VEJA concordam que, para ganhar de Trump, o candidato democrata terá de conseguir passar ao eleitor confiabilidade, segurança e transparência. “Uma das coisas que os americanos mais detestam em Donald Trump é a imprevisibilidade. Nunca se sabe o que ele vai fazer. Também se nota certa fadiga em relação ao clima de ódio e aos exageros dele”, diz John Forrer, professor da escola de políticas públicas da Universidade George Washington. Darrell West, vice-presidente e diretor de estudos de governança do Brookings Institution, em Washington, ressalta outro ponto importante a ser explorado pelos democratas. “Eles precisam convencer os integrantes da classe média de que as políticas do atual governo não os estão ajudando.”

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    A batelada de pré-candidatos democratas, que pode passar de vinte e ser a maior de todos os tempos (o recorde anterior pertence aos republicanos — no início da corrida ganha por Trump, eram dezesseis nomes na lista), precisará de fôlego para atravessar a longa jornada das primárias. Ela começa em Iowa, com um caucus — em que todo mundo pode votar, e não só as pessoas registradas previamente — em 3 de fevereiro de 2020. O panorama costuma permanecer incerto até a célebre “Superterça”, em 3 de março, quando votam no mesmo dia eleitores de dez estados: Alabama, Califórnia, Massachusetts, Minnesota, Carolina do Norte, Oklahoma, Tennessee, Texas, Vermont e Virgínia.

    O processo culmina na convenção nacional, que ocorrerá entre 13 e 16 de julho do ano que vem, em Milwaukee, no Estado de Wisconsin. Segundo análise realizada pelo próprio partido, com dados apurados entre 2008 e 2016, o eleitorado democrata tornou-se menos branco, mais educado e mais feminino. Não se conseguiu tomar sua temperatura até o momento. Nesse contexto, definir quem será escolhido para enfrentar Trump em novembro de 2020 ainda renderá enxurradas de tuítes de todos os lados.

    Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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