Satanismo, pedofilia e Trump: bizarra conspiração QAnon se amplia nos EUA
Teoria que pinta presidente republicano como herói contra forças do mal transcende Internet com apoiadores que concorrem nas eleições americanas
A empresária Marjorie Taylor Greene será oficialmente uma das republicanas a concorrer ao Congresso nas eleições de novembro nos Estados Unidos, pelo estado da Geórgia. Acusada diversas vezes de racismo, antissemitismo e islamofobia, ela é ainda mais conhecida por outro motivo: Greene é apoiadora do QAnon, teoria da conspiração de extrema direita, popular entre alguns partidários de Donald Trump. Antes restrito à Internet, o QAnon agora conta com uma lista crescente de candidatos e outros representantes de carne e osso.
“Q é um patriota”, disse Greene em 2017, referindo-se à misteriosa persona online que lidera a trupe de seguidores, os “anons”. Essa figura afirma ser parte do governo Trump. “Ele é alguém que ama muito o seu país e está na mesma página que nós, e é muito pró-Trump. Ele parece ter conexões nos níveis mais altos”, afirmou a republicana.
Conforme o QAnon se espalhou, gerou uma série de subteorias bizarras e sinistras, envolvendo satanismo, pedofilia, tráfico sexual, antissemitismo, entre outros temas. À primeira vista, pode parecer tão sem pé nem cabeça que nem merece muita atenção. Mas o FBI classificou a conspiração como uma potencial ameaça terrorista doméstica, e sua transição da Internet para a vida real por meio da política pode alavancar sua popularidade.
Quem é Q?
A teoria da conspiração gira em torno de uma figura online misteriosa e anônima: “Q”. Uma espécie de profeta moderno, “Q” começou a postar denúncias crípticas em fóruns anônimos da Internet em outubro de 2017, como o 4chan (antro de diversos grupos e teorias da conspiração da extrema direita).
A pessoa, ou pessoas, por trás de “Q” afirmam possuir laços com autoridades de segurança de alto nível e evidências de uma conspiração criminosa mundial.
No que os “anons” acreditam?
Tudo começou com a investigação do conselheiro especial Robert Mueller sobre os possíveis laços de Donald Trump com a Rússia e uma possível interferência nas eleições presidenciais de 2016. Segundo os “anons”, Mueller na verdade investigava Hillary Clinton, Barack Obama e outros democratas proeminentes a mando do republicano.
De acordo com algumas postagens da internet escritas por “Q” – apelidadas de “migalhas de pão”, como na fábula de João e Maria –, Clinton e Obama estariam em conluio com o presidente russo, Vladimir Putin, para derrubar o presidente, na teoria do “deep State” (Estado profundo).
Outras vão ainda mais longe, sugerindo que democratas, junto com outros líderes mundiais e atores de Hollywood, participam de uma rede global de pedofilia que usaria um porão de uma pizzaria como quartel general – o famigerado “Pizzagate”. Todas essas figuras já estariam sendo monitoradas com tornozeleiras eletrônicas, até o momento em que seriam presas, no que os “anons” chamam de “tempestade”. Em 2017, Trump alertou líderes militares sobre uma suposta “calmaria antes da tempestade” durante uma reunião.
De acordo com “Q”, foram os militares que persuadiram Trump a concorrer à Presidência para limpar a vasta rede criminosa. Desde o início de seu mandato, apoiadores do presidente são vistos com símbolos ou frases que remetem à teoria. O líder americano responde reproduzindo e incentivando a conspiração.
“Trump amplifica as teorias que jamais teriam tração fora da comunidade dos seguidores de seita que é QAnon”, diz Daniel Hellinger, especialista em relações internacionais e autor de Conspiracies and Conspiracy Theories in the Age of Trump (“Conspirações e Teorias da Conspiração na Era Trump”, em tradução livre).
Nenhuma parte da história se provou verdadeira – e as chances são de que quanto mais você se informa sobre suas nuances, mais confuso você fica. Geralmente pró-Trump e anti-Estado profundo, QAnon, como a maioria das teorias da conspiração, não é exatamente coerente: se adapta a quaisquer desenvolvimentos que possam contestá-la.
“A disseminação da teoria é sintomática do desejo das pessoas pela a sensação de segurança em um mundo que, muitas vezes, parece fazer pouco sentido”, afirma Michael Barkun, autor do livro A Culture of Conspiracy – Apocalyptic Visions in Contemporary America (“Uma Cultura da Conspiração – Visões Apocalípticas na América Contemporânea”, em tradução livre). Segundo o especialista, teorias da conspiração prosperam entre aqueles que experimentam perda, marginalização ou exclusão.
Como se articulam seus seguidores?
Por um tempo, as postagens do QAnon foram limitadas principalmente a fóruns anônimos de Internet, como o 4chan. Mas, nos últimos anos, “Q” ganhou popularidade em plataformas online muito menos obscuras, como o YouTube, Twitter e Facebook. No fim de julho, o Twitter anunciou medidas duras contra usuários que fizessem referência à teoria da conspiração, fechando 7.000 contas por “claros e documentados danos offline informativos, físicos, sociais e psicológicos”.
A medida, que promete bloquear ao menos 150.000 perfis no total, gerou uma migração dos “anons”. De acordo com o jornal britânico The Guardian, há mais de 170 grupos, páginas e contas QAnon no Facebook e Instagram, com mais de 4,5 milhões de seguidores agregados – um crescimento de 34% em relação ao fim de junho. Pelo menos 15 países têm comunidades de apoiadores à teoria, incluindo Alemanha, Itália e Brasil.
Para comunicarem-se, “anons” fazem uso de termos próprios – como a mencionada “tempestade” – e frases-código, – como “wwg1wga”, abreviação de “we go one, we go all” (“para onde vamos um, vamos todos”, quase um Três Mosqueteiros conspiratório). Além disso, suas aparições ocorrem em ondas, em resposta ao nível de ameaça a Trump.
“Quando o Relatório Mueller foi publicado, o movimento enfraqueceu. Por outro lado, agora que a derrota de Trump nas eleições parece cada vez mais provável, QAnon voltou à tona”, afirma Joseph Parent, coautor com Joe Uscinski de American Conspiracy Theories (“Teorias da Conspiração Americanas”, em tradução livre).
Por que essa conspiração pode ser perigosa?
À primeira vista, QAnon pode parecer quase inofensivo devido à incoerência, mas o rótulo do FBI de “potencial ameaça terrorista” não é à toa. A linguagem da comunidade é de soldados e guerreiros que batalham contra o mal e é questão de tempo até que a luta chegue ao mundo físico. Em junho deste ano, “Q” e seus seguidores divulgaram um “juramento”, comprometendo-se a tornarem-se “soldados digitais”.
“QAnon é uma milícia civil em potencial, que pode sair às ruas para defender Trump durante e após as eleições”, diz Jack Bratich, autor de Conspiracy Panics: Political Rationality and Popular Culture (“Pânicos de Conspiração: Racionalidade Política e Cultura Popular”, em tradução livre). Apoiadores do QAnon já foram presos enquanto portavam armas. No ano passado, um chefe da máfia em Nova York foi assassinado por um jovem que alegava estar atacando o “deep State”.
Além disso, a comunidade pode causar dano mesmo na Internet, onde estão boicotando o movimento contra a pedofilia Save The Children, porque usam sua hashtag (#SaveTheChildren) para acusar desde Oprah Winfrey até o Papa Francisco de tráfico de crianças.
Ainda não está claro como enfrentar o crescimento do QAnon, principalmente em meio a eleições onde dezenas de candidatos já declararam alguma forma de apoio à teoria da conspiração. Para Bratich, a fiscalização em redes sociais pode ser um começo, mas não é o suficiente. “Quando estão motivadas, as pessoas dão um jeito de se encontrar”, diz.