Futuro ministro da Defesa, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira rejeita a ideia de que será um Golbery do Couto e Silva do governo de Jair Bolsonaro. Diante da referência à eminência parda do regime militar, mais conhecido como “o bruxo”, e dos comentários de que comandará também a política externa brasileira, o general de Exército mostrou-se indignado.
“Está doida! Estou fora, ainda mais de ser o Golbery do governo. Pode tirar o meu nome disso”, afirmou em entrevista por telefone a VEJA.
Na conversa, o general Heleno indicou que não haverá comunhão do futuro governo com as intenções dos Estados Unidos de intervir militarmente na Venezuela, para derrubar o regime de Nicolás Maduro. Mas esquivou-se de responder sobre outras questões de política externa, como a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, confirmada por Bolsonaro, e os rumores de rompimento de relações do país com Cuba.
“É constitucional que o Brasil não aceita ingerência de países estrangeiros nos assuntos internos e também não fará ingerência nos assuntos internos de outros países. Então, é isso aí”, afirmou o general sobre os rumores em torno da Venezuela.
Cogitado para ser vice-presidente, o general Augusto Heleno passou a ser a escolha de Bolsonaro para o Ministério da Defesa depois que seu partido, o PRP, rejeitou a aliança com o candidato do PSL, em julho passado. Durante a campanha, ele coordenou o programa de governo de Bolsonaro.
Aos 70 anos, Heleno é respeitado nas Forças Armadas, em especial por seu trabalho como comandante da missão de paz da ONU no Haiti. Para a Defesa, indicou que reforçará o Sistema de Monitoramento das Fronteiras (Sisfron), especialmente como meio de impedir que o Brasil se torne um “narcopaís”.
O general reiterou seu polêmico conceito de que “direitos humanos são para humanos direitos” e insistiu que “pessoas normais não têm desvios de conduta”. Mas defendeu uma imediata mudança no sistema penitenciário brasileiro, para permitir que os condenados possam ser recuperados.
Também indicou que a missão de Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro terá prosseguimento no governo de Jair Bolsonaro.
O presidente-eleito fez anúncios importantes na área externa, como a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém, que tem causado polêmica logo neste início de período de transição. Não é muito antecipado? Cada área tem de ser tratada pelo seu responsável para evitar choque de opiniões, fica desagradável de ver responsável da área desdizer o que foi dito antes. Esta área de Política Externa não foi tratada com muito espaço nem clareza porque ainda não há um ministro das Relações Exteriores indicado. Os comentários são muito díspares. Não há unidade de pensamento. Agora, é muito complicado dar opinião porque poderá entrar em choque com a do futuro ministro. Estou evitando.
A imprensa tem aventado vários nomes para o Ministério de Relações Exteriores. O senhor terá participação na escolha? Eu não fui perguntado sobre isso. Jogam o verde para colher maduro. Não tenho a menor ideia. Tenho muito pouco contato com o presidente. Falo com ele cinco minutos. Estou longe (em Brasília), não tenho condições de estar no Rio de Janeiro. Não tenho nenhuma participação nisso aí. Zero.
Mas soube que o senhor seria o Golbery (general Golbery do Couto e Silva) do governo Bolsonaro. Está doida! Estou fora, ainda mais de ser o Golbery do governo. Pode tirar o meu nome disso.
O governo Bolsonaro vai cortar as relações diplomáticas com Cuba? Não tenho a menor noção. No início de um governo, depois de uma eleição com dois candidatos bastante diferentes em termos de ideologia, de programa de governo e até de parceiros, é natural isso acontecer. É natural também isso ser resolvido. Não vai ficar no ar. Na hora que houver um ministro das Relações Exteriores, ele vai conversar com o presidente e dizer qual a orientação. Estão chutando muito. Hoje mesmo chutaram de novo essa história de recriar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Todos os governos começam assim. A imprensa fica muito ansiosa até com o nome do faxineiro do Palácio do Planalto. Tem um governo agora em período de transição. É natural que se soltem umas iscas para pegar peixe grande, peixe pequeno.
O governo dos Estados Unidos estuda uma possível intervenção militar na Venezuela. Não vou entrar nesse assunto porque é do ministro das Relações Exteriores.
É também do ministro da Defesa, antigo ministro da Guerra. Isso se chegar na Defesa. Antes disso, tem uma série de considerações na área de Relações Exteriores. Se você for na Constituição… O presidente da República já disse que será um escravo da Constituição.
A Constituição diz que o Presidente da República pode declarar guerra (autorizado ou referendado pelo Congresso). Ele já disse que é escravo da Constituição. Para declarar guerra não é fácil assim, não. Se para uma missão de paz é complicado para caramba, imagina para declarar guerra. Isso aí é especulação. Também é constitucional que o Brasil não aceita ingerência de países estrangeiros nos assuntos internos e também não fará ingerência nos assuntos internos de outros países. Então, não tem de procurar mais nada. É isso aí.
“Eu, que sou Zé Mané, tenho uns 50 gênios da humanidade aqui no meu celular. São caras capazes de resolver os problemas da Previdência, acabar com a dívida pública, distribuir cesta básica para 300 milhões”
Há alguém assessorando o presidente-eleito na área internacional? Não sei. Eu não sou o assessor dele na área internacional. É o seguinte: a lista de assessor não nomeado de presidente da República recém-eleito, se quiser, tem três folhas de papel almaço. Eu, que sou Zé Mané, tenho pelo menos uns 50 gênios da humanidade aqui no meu celular. São caras capazes de resolver os problemas da Previdência, acabar com a dívida pública, distribuir cesta básica para 300 milhões. Tem cada coisa que você não sabe se ri ou se chora, cada currículo mirabolante que merecia o Prêmio Nobel. Nesta época, é normal. Eu recebo, por dia, cerca 700 mensagens no zap (WhatsApp), 110 a 120 telefonemas. Eu vivo como um zumbi. Saio do telefone para o zap, do zap para o telefone. Entregam documentos de salvação na Pátria na portaria. O que estou aprendendo…
Para sua área, a Defesa, quais seus projetos, quais mudanças o senhor pretende fazer? Minha área é privilegiada porque foi onde houve menos interferência dessa gestão catastrófica (do PT). A Defesa é arrumada, tem Plano Estratégico, tem Livro Branco (o documento de todas as atividades do ministério). Tem quem mande e quem obedeça, o que é uma grande vantagem. Isso facilita tudo. A gente tem muito zelo pela meritocracia. Ninguém cai de paraquedas a general. Não é que um general não possa se corromper, mas ele vai ser percebido imediatamente. Todos nós sabemos qual o carro dele. Eu tenho um HB20. Se eu aparecer amanhã com um Mercedes, vão perguntar: como ele apareceu com um Mercedes? O cara morava em Vila Valqueire e compra um apartamento na avenida Vieira Souto. Ganhou na loteria? Nossas vidas são livros abertos. A meritocracia é muito respeitada, cada vez mais aperfeiçoada e inegociável.
Qual encaminhamento o senhor dará aos projetos de construção dos caças e do submarino nuclear? O dos caças está andando, com a Suécia. O do submarino sofreu um corte de desembolsos de verbas. Eu acompanhava o Sisfron (Sistema de Monitoramento das Fronteiras), que sofreu um baque enorme com a interrupção de alocação de recursos. Esse projeto foi seriamente prejudicado. Vai ser tocado. É ruim essa paralisação porque, como é um projeto muito dependente de tecnologia, qualquer interrupção causa um prejuízo enorme. Porque a tecnologia avança muito rapidamente e, se houver defasagem de cinco anos entre partes do projeto, ele se torna obsoleto. O SisGA (Sistema de Monitoramento da Amazônia Azul) é outro projeto muito importante.
Sempre foi polêmico o uso das Forças Armadas para o combate ao crime dentro do país. O senhor manterá a ação no Rio? Isso é missão constitucional. Não é nossa missão principal, mas não digo que seja secundária porque está no mesmo texto sobre as missões constitucionais das Forças Armadas. Aí entra a execução da missão de Garantia da Lei e da Ordem, que exige instrução muito especial, atitude muito diferente da tropa. No início, a gente tinha rejeição a esse tipo de missão. Mas ela foi se tornando cada vez mais costumeira, mais solicitada. O Haiti nos ajudou muito. Era missão real, mas se encarar como campo de treinamento, o Haiti foi sensacional para as Forças Armadas, particularmente para o Exército, a Marinha e os Fuzileiros Navais.
O contato com as comunidades haitianas deu uma perspectiva diferente para as Forças Armadas agirem na Garantia da Lei e da Ordem no Brasil? Sim, e com comunidades mais pobres do que as brasileiras mais pobres. Não conheço nenhuma comunidade como aquelas no Brasil. Olha que conheço o Vale do Jequitinhonha, o Nordeste. No Haiti, tudo era chocante. Eu ia conversar muito (com as tropas) porque sabia que era um trauma ver seres humanos vivendo naquelas condições. E nós tivemos um aprendizado enorme em logística, com uma linha de suprimento muito eficiente. Lá, não dá para encostar o caminhão se a gasolina terminar, parar de atirar se a munição acabar. Isso já está sendo muito empregado no Rio de Janeiro. Temos muita gente que passou por lá e tomou consciência de suas próprias limitações.
“No início, a gente tinha rejeição a esse tipo de missão de Garantia da Lei e da Ordem. Mas ela foi se tornando cada vez mais costumeira, mais solicitada”
O senhor já conversou com o ministro Sílvio Luna, da Defesa, sobre a transição? Não. Eu estou esperando definir o ministério inteiro do presidente (Bolsonaro). Hoje não há mais um ministério que cuide de um assunto sem ter interação com as outras pastas. Isso é um dos fenômenos que a internet e a globalização nos trouxeram. Quando trato do Sisfron, tenho de estar em contato com os ministérios da Ciência e Tecnologia, dos Transportes. Sílvio Lula é muito meu amigo. Engraçado que passei a chefia do gabinete do comandante Enzo (Martins Peri) para o Sílvio Luna e, agora, ele provavelmente deve me passar o ministério. Estou em uma roda vida muito grande, não tive possibilidade de conversar. Também não procurei os comandantes das Forças por uma questão de ética, para não ultrapassar o Sílvio Luna. Quero conversar com eles quanto o Luna estiver junto. Não temos (nas Forças Armadas) esse componente político-partidário, o que facilita. Mas os princípios éticos não serão feridos
O senhor disse recentemente que ‘os direitos humanos são para os humanos direitos’. Não deveria ser para todos os humanos? Eu digo isso há muito tempo, nas palestras que faço. Os direitos humanos têm de ser primeiro para os humanos direitos. Não se pode inverter isso. Não se pode preocupar excessivamente com os diretos humanos dos bandidos, para usar um termo forte, quando os humanos direitos não têm o direito nem de sair de casa, de ir e vir, de o filho ir para a escola e se atrasar cinco minutos para voltar. A primeira preocupação dos direitos humanos é atender aos humanos direitos. Depois, vamos estudar o que vamos fazer com os humanos ilícitos.
Não seria preferível para todos? É para todo mundo. Mas se você dedicar seus esforços aos que não são direitos, os que são direitos vão ficar abandonados. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro. Por muito tempo, os humanos direitos foram relegados ao segundo plano. Vamos nos preocupar com os tiros que a polícia deu, se matou certo, se matou errado. Mas está morrendo gente do lado de cá, está morrendo policial. Você não pode andar nas ruas porque é assaltado do lado de sua casa, na padaria, no supermercado, no cinema. Tem alguma coisa errada. Tem de haver um equilíbrio. Não podemos achar que todos os seres humanos que não são direitos são uns pobres coitados vitimados por seu destino, quando outros passaram pelas mesmas condições e superaram tudo para serem honestos, para criar uma família e que vão perdendo o direito de viver honestamente.
E no caso de atrocidades de policiais? Os desvios de conduta são realizados por aqueles que não têm a cabeça normal. Se você é uma pessoal normal, não vai ter desvio de conduta. Fico impressionado que ficam dando asas para algumas imaginações que não têm sentido. O policial que comete atos de atrocidade não é mentalmente normal. Ele tem algum problema. Tem de haver uma pregação sobre o uso correto das regras de engajamento, sobre dar para o policial segurança jurídica para ele atuar. Ele atua contra um grupo que não tem nenhuma limitação, sendo que ele tem todas as limitações legais. E cada vez mais criam limitações legais para o emprego da força legal. Como não se consegue impor limitações ao outro lado, os banidos têm cada vez mais liberdade de ação. E você, do lado de cá, tem menos liberdade de ação.
Há questões de direitos humanos a serem consideradas nesse caso e também no sistema penitenciário. Concorda? Acho absurda a situação prisional no Brasil. Aquilo é desumano. Até porque a Constituição prevê a recuperação dos que são encarcerados. Aquilo é mestrado e doutorado de banditismo. É um absurdo. O sistema prisional tem de ser revisto. Temos de pensar se é assim que temos de conduzir o encarceramento: o preso não trabalha, tem celular, recebe visita íntima e passa carta, bilhete. Isso está dentro dos direitos humanos? Claro que não. Isso tem de ser entendido. Isso é direito desumano. Porque alguém que é sério, honesto vai morrer porque alguém que acha que isso é direitos humanos está dando uma oportunidade para o bandido continuar a ser bandido.
O senhor vai tratar de sua visão sobre sistema penitenciário com o futuro ministro da Justiça, Sergio Moro? Fiquei felicíssimo com a nomeação. Foi um gol de bicicleta de meio de campo. Já vi gol de meio de campo, vi gol de bicicleta, mas bicicleta de meio de campo é a primeira vez. Essa questão vai ficar sob a batuta dele. Isso é uma coisa urgente. Temos de pensar seriamente nisso. Não sei o preço que pode custar. Mas algumas coisas independem de gastos. Dependem muito mais de ações, de fiscalização, de boa vontade, de mentalidade do que de dinheiro.
“Os desvios de conduta são realizados por aqueles que não têm a cabeça normal. O policial
que comete atos de atrocidade não é mentalmente normal. Ele tem algum problema”
O Sisfron tem objetivo forte de conter ações de grupos de tráfico de drogas e armas. Com as verbas cortadas, o sistema está dando conta dessa missão? Não tenho menor dúvida que não. Mesmo com todas as verbas, será muito difícil controlar as fronteiras. Nós temos 17.000 quilômetros de fronteira, o que equivale a 17 vezes a distância entre o Rio e Brasília, dos quais 11.000 quilômetros em área de selva. Preciso aumentar o efetivo na fronteira, o que custa caro, e tenho de usar recursos na finalização desses modelos tecnológicos. Os Estados Unidos e o México têm 3.700 quilômetros de fronteira em área desértica, com todos os recursos e materiais de tecnologia, e não conseguem monitorar plenamente a fronteira. Basta ver a quantidade de brasileiros que já passou para lá. Nosso problema é muito mais sério porque temos essa fronteira gigantesca, com 11.000 quilômetros de área de selva, onde é dificílimo o patrulhamento. E mais embaixo, é mais difícil ainda porque há uma série de cidades geminadas em área seca, e não se sabe quando está de um lado ou do outro. Precisamos de estrutura tecnológica e efetivo muito bem preparado para ter o monitoramento bom. Excepcional é muito difícil.
Esse enfraquecimento do controle na fronteira ampliou o acesso de drogas e de armas ao Brasil? O Brasil é o maior consumidor de crack no mundo, o segundo de cocaína e Brasília não se deu conta disso. Não vamos ter um final feliz. Se continuarmos a aceitar essa permissividade, vamos virar um “narcopaís”. Não é nem um “narcopaís”. É um “narcocontinente” porque, ao lado do “narcopaís”, há os três maiores produtores de cocaína do mundo. Há ainda o Paraguai, que é grande fornecedor de maconha e de armas. Inegavelmente, todos são países amigos, com os quais mantemos muito bom relacionamento. Não se pode culpar os países pela proliferação do crime. Porque o crime dá lucro, e não houve uma ação para, pelo menos, empatar esse jogo.