Quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, em 1975, o DOI-Codi, órgão de repressão do regime militar, alegou que ele se suicidara. O Exército lançou uma nota oficial comentando seu “gesto extremo” e dizendo que ele fora encontrado enforcado depois de ter sido deixado desacompanhado em uma sala. Uma foto que comprovaria a narrativa foi divulgada. Seus joelhos estavam dobrados e seus pés, encostados ao chão, o que impossibilitaria um suicídio por enforcamento. Herzog virou um exemplo da truculência da ditadura, cujos generais não precisavam se submeter a nenhum tipo de fiscalização.
Na semana passada, a ditadura venezuelana de Nicolás Maduro “suicidou” um opositor. O vereador Fernando Albán, do partido de oposição Primeiro Justiça, morreu na segunda-feira 8. No mesmo dia, as autoridades do país anunciaram que o político havia se matado na sede do Serviço Bolivariano de Inteligência, o Sebin, a polícia política do regime. Albán estava detido no chamativo prédio do Helicoide, que antes de se tornar uma prisão e centro de torturas era um moderno centro comercial. “No momento em que o preso seria enviado (a um tribunal), encontrando-se na sala de espera do Sebin, ele se jogou por uma janela das instalações e a queda causou sua morte”, disse Néstor Reverol, ministro do Interior e Justiça. Já Tarek William Saab, procurador-geral, contou uma história um pouco diferente: “A versão preliminar dos fatos é que Albán pediu para ir ao banheiro e de lá se jogou do 10º andar”.
As explicações não convenceram ninguém. O governo brasileiro, o Senado americano, a União Europeia e a ONU cobraram investigações independentes sobre o caso, o que dificilmente acontecerá. Os casos de tortura na Venezuela são notórios. Um relatório da ONU de junho deste ano denunciou o emprego de castigos físicos por parte dos agentes do Sebin contra opositores políticos. As versões oficiais sobre Albán são cheias de buracos. Outros opositores que já passaram pelo local e sobreviveram contaram que os oficiais sempre seguem os detidos em qualquer repartição do prédio, inclusive no banheiro. Além disso, as janelas do edifício raramente ficam abertas. “É muito provável que tenha sido um assassinato. Esse acontecimento só mostra mais uma das falhas desse regime, que já causou a morte de milhares de pessoas”, diz Dorival Guimarães, professor de direito internacional do Ibmec, em Belo Horizonte. O partido de Albán não tardou em denunciar o caso como um assassinato.
O vereador foi preso sem evidências, acusado de ter colaborado em um atentado contra Maduro durante um ato público no começo de agosto. Vídeos postados na internet de fato mostram um drone explodindo no ar, mas sem ferir ninguém e em um lugar não identificado. Bombeiros que estavam no ato afirmaram que um botijão de gás explodiu em um prédio próximo quando o presidente discursava. O barulho teria assustado as pessoas presentes e posto soldados para correr, mas seria um exagero falar em atentado. Maduro aproveitou a ocasião para atribuir a culpa aos Estados Unidos, à Colômbia e ao opositor Julio Borges, que também integra o Primeiro Justiça, de Albán.
No Brasil, a morte de Vladimir Herzog levou cerca de 8 000 pessoas a se arriscarem na realização de um protesto sob o regime militar, que estava apenas começando a sair de sua fase mais repressiva. Na Venezuela, os protestos populares já foram grandes e barulhentos, mas se encontram num momento de inflexão. É improvável que haja manifestações nas ruas, ou que o governo de Caracas, constrangido pelos apelos internacionais, promova uma investigação séria do “suicídio”.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2018, edição nº 2604