Talibã um ano depois: legado de fome, miséria e desrespeito às mulheres
De 15 de agosto de 2021, quando grupo fundamentalista retomou Afeganistão, para cá, o retrocesso é claro e moderação se mostrou infundada
Se há um ano os aeroportos do Afeganistão eram palco de cenas de horror, com milhares de pessoas desesperadas para fugir, agora são espaços mais calmos. Alguns anúncios publicitários foram repintados e outros, sobretudo os mais ocidentalizados, deram espaço a uma fileira de bandeiras brancas do Talibã que recepcionam os recém-chegados a Cabul, relata Lyse Doucet, correspondente da rede BBC na capital afegã.
“Quando você chega ao aeroporto internacional de Cabul, a primeira coisa que você nota são as mulheres, em vestes pretas e adornadas por lenços marrons”, diz.
De 15 de agosto de 2021, quando o grupo fundamentalista retomou o poder no país, para cá, o retrocesso é claro. As promessas de uma entidade mais moderada, na esteira da atrapalhada saída de tropas dos Estados Unidos do país, rapidamente se provaram infundadas. Nem um mês depois da tomada de poder, grupos de monitoramento já publicavam amplos relatórios que listavam séries de abusos contra civis, incluindo intimidação e a repressão das afegãs e dos defensores dos direitos humanos, represálias contra funcionários do antigo governo e ataques à liberdade de expressão.
“Os talibãs tentaram persuadir o mundo que eles iriam respeitar os direitos humanos, mas as informações que recebemos de lá mostram uma outra realidade”, dizem as organizações Anistia Internacional, FIDH (Federação Internacional pelos Direitos Humanos) e OMCT (Organização Mundial Contra a Tortura).
Nesta segunda-feira, para marcar um ano da reconquista do país, o Talibã instaurou um feriado nacional, chamado de “O Orgulhoso Dia de 15 de Agosto”.
“Confiança em Deus e o apoio do povo trouxeram esta grande vitória e liberdade ao país”, escreveu Abdul Wahid Rayan, chefe da agência de notícias Bakhtar, comandada pelo grupo extremista. “Hoje, 15 de agosto, marcamos a vitória do Emirado Islâmico do Afeganistão contra a ocupação da América e de seus aliados”.
No início de maio deste ano, o Talibã ordenou que todas as mulheres que saíssem em público deveriam usar roupas que as cobrissem da cabeça aos pés, deixando apenas os olhos visíveis. O decreto dizia que as mulheres deveriam sair de casa apenas quando necessário e que seus parentes do sexo masculino enfrentariam punições por violações do código de vestimenta das mulheres.
A regra, inegociável, se estendeu até para apresentadoras de TV. Em entrevista à agência de notícias AFP, a apresentadora Sonia Niazi, do canal local TOLO News, relatou que o canal recebeu ordens para que elas fossem transferidas ou demitidas caso não cobrissem o rosto.
As punições começam com uma intimação, mas podem escalar para audiências judiciais e até prisões.
Para além, o retrocesso tem impactos gigantes pelas próximas décadas, com direito a um decreto proibindo meninas de frequentar a escola após a sexta série, revertendo promessas anteriores de autoridades do grupo de que meninas de todas as idades teriam permissão para estudar.
Embora as escolas particulares sigam funcionando, bem como as universidades, a limitação ao ensino gratuito de meninas faz parte de uma estratégia que se estende também ao desestímulo ao trabalho feminino em plena crise econômica, um baque gigante no orçamento de muitos lares.
“O Talibã não é um grupo unitário, mas é difícil dobrar os extremistas”, diz Dawn Chatty, do Centro de Estudos de Refugiados da Universidade de Oxford. Enquanto isso, todos penam, não só as mulheres.
Miséria e fome
Desde o ano passado, as famílias do Afeganistão têm lidado cada vez mais com a miséria e a fome. Com a desconfiança da comunidade internacional e as sanções impostas pelos Estados Unidos, a ajuda estrangeira, fator determinante para o funcionamento da economia, foi bloqueada devido às violações dos direitos humanos praticadas pelo grupo.
De acordo com informações da ONU, cerca de 25 milhões de afegãos – mais de 55% da população – enfrentam níveis extremos de fome, como combinação de uma seca prolongada, aumento de preços de alimentos e falta de empregos. Mais da metade da população do país precisa de ajuda humanitária para sobreviver.
Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos divulgados nesta segunda-feira, a média nacional é que três quartos do salário sejam usados apenas em comida. Mesmo assim, seis milhões de pessoas estão à beira da fome e um milhão de crianças enfrentam desnutrição severa.
“Nunca tínhamos alimentos diferentes, mas pelo menos conseguíamos cozinhar uma vez por dia. Agora, é uma vez por semana e às vezes nem há pão para comer”, diz Maidan Wardak, mãe de quatro filhos, à Reuters.
Como resposta, o Talibã afirma saber da necessidade dos pobres e atribui essas dificuldades aos conflitos de mais de quatro décadas e à má gestão do governo anterior. Além disso, o grupo fundamentalista pede frequentemente que Washington desbloqueie cerca bilhões de dólares congelados em ativos do banco central.
“Pretendemos amenizar os problemas. Nós sabemos o que nossa população está enfrentando”, diz o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid.
Especialistas apontam que essa é a pior crise vivida pelo país desde que os talibãs foram retirados do poder por tropas ocidentais pela primeira vez, há 20 anos.
A comunidade internacional vem tentando restaurar a ajuda, porém demanda que o atual governo dê garantias de que os direitos humanos serão respeitados, incluindo a revogação das restrições que impedem mulheres e meninas de estudar e trabalhar.
Em resposta, Mujahid disse que esse processo está sendo feito de maneira gradual, além de prometer anistia para ex-funcionários do antigo governo. Como forma de se mostrar mais inclusivo, o Talibã nomeou como vice-ministro da Economia um ex-professor universitário da minoria Hazara, que corresponde entre 10 e 20 milhões dos 38 milhões de afegãos.
No entanto, o esforço ainda tem sido muito pouco para amenizar a situação vivida pelas famílias do país. Sayed Yassin Mosawi, que trabalha em um mercado, diz que sua renda cai drasticamente durante o inverno e que depende de empréstimos para sobreviver.
“Normalmente pegamos emprestado o que precisamos nas lojas e padarias e pagamos o empréstimo em dois ou três meses, quando as coisas começam a melhorar. Desde que o Talibã assumiu, não há trabalho, os preços subiram, as pessoas deixaram o país. Não temos nada”, diz.