Tragédia humanitária que de tempos em tempos se repete no Mar Mediterrâneo, o corredor mais usado por africanos e refugiados do Oriente Médio em busca do eldorado europeu, o naufrágio em massa de imigrantes voltou a chocar a Europa, desta vez em um ponto do planeta bem mais movimentado: o Canal da Mancha, naco do Atlântico espremido entre o Reino Unido, de um lado, e a França e um pedaço da Bélgica, de outro. Ao menos 27 pessoas morreram, a maioria iranianos e iraquianos curdos, quando o precário bote inflável que rumava de Calais, na costa francesa, para Dover, na britânica, murchou e mergulhou os 34 passageiros nas águas gélidas e revoltas.
O drama espalhou ondas de choque por toda a União Europeia, que ainda digere os efeitos do Brexit, e fez reacender a tensão latente entre Londres e Paris, aliados de conveniência separados por rixas históricas. O primeiro-ministro Boris Johnson condenou a leniência francesa para o problema. “Enquanto os atravessadores criminosos não forem punidos, continuarão a pôr a vida de inocentes em risco”, bradou. O presidente Emmanuel Macron, crítico da política britânica abertamente anti-imigração, convocou uma reunião de emergência de líderes do continente e proclamou: “Não permitiremos que o Canal da Mancha vire um cemitério”.
De acordo com o ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, entre os mortos há sete mulheres, uma delas grávida, e três crianças. Duas pessoas foram hospitalizadas e uma está desaparecida. Relatos iniciais diziam que o bote foi abalroado por um navio de grande porte, mas o intenso trânsito comercial no canal não é o único perigo que o percurso de 32 quilômetros oferece — trata-se de uma via de águas traiçoeiras sujeita a mudanças de tempo. Os dois países, aliás, tinham acabado de assinar um acordo para endurecer a repressão da travessia ilegal da faixa marítima, que só faz aumentar. Em um só dia, a quinta-feira 11, 1 200 pessoas foram apreendidas ao pisar em solo britânico, um recorde histórico. O total de 2021 é de 23 000 imigrantes, um salto de mais de 150% em comparação ao ano passado. O número de afogamentos também aumentou em quase 700%. “Precisamos desesperadamente de uma nova abordagem para o asilo humanitário e de esforços genuínos para criar rotas seguras”, diz Tom Davies, diretor da Anistia Internacional no Reino Unido.
A ilha britânica é um farol de atração para a enorme população de imigrantes que fala inglês, tem parentes por lá e pode se beneficiar de um mercado de trabalho mais aberto a gente sem documentação. Deter a onda migratória foi um ponto determinante na campanha pelo Brexit, na qual o Partido Conservador de Johnson repisou a necessidade de controle total das fronteiras. O método mais comum de entrada ilegal era a bordo de caminhões, onde grupos se empilhavam trancados no escuro e com pouco ar. A fiscalização, no entanto, apertou depois que, em 2019, 39 vietnamitas foram encontrados mortos por asfixia ou hipotermia dentro de um trailer refrigerado em uma estrada do Reino Unido. A burocracia e a morosidade na fronteira pós-Brexit acabaram de vez com a rota. A partir daí, cruzar o Canal da Mancha (English Channel, em inglês, ou La Manche, em francês), com todos os seus riscos, passou a ser a opção mais procurada. Os imigrantes costumam chegar à Europa de trem, barco ou avião, atravessar a França e montar acampamento em Calais e vizinhanças, enquanto negociam a travessia. O Reino Unido paga à polícia francesa para desmontar as barracas e dispersar os acampados, mas eles insistem. Segundo o ministro Gérald Darmanin, na quarta-feira 24, dia do desastre, 780 policiais franceses patrulhavam a costa e 671 ilegais foram presos.
Desde que o Reino Unido saiu oficialmente da União Europeia, em janeiro de 2020, o Canal da Mancha se tornou um ponto de tensão permanente. A documentação para passar pela alfândega britânica virou pesadelo para caminhoneiros vindos da França e da Bélgica. Como se não bastasse, os dois países estão em pé de guerra por causa das licenças exigidas dos barcos pesqueiros para circular em águas “inimigas”, um entrevero burocrático que já ocasionou convocação de embaixadores, apreensão de embarcações e ameaças de interdição de portos. Os imigrantes ilegais, nesse contexto, são uma complicação a mais, e tanto a França quanto o Reino Unido querem mesmo é vê-los pelas costas. No jogo de empurra, um bote apinhado entra em colapso e o sonho de uma vida melhor morre muito longe da praia.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766