A segunda rodada da maratona pré-eleitoral americana, com os holofotes voltados para a escolha do candidato do Partido Republicano que concorrerá à Casa Branca em novembro, enfatizou em meio à nevada paisagem de New Hampshire um cenário eleitoral que se delineia há meses: na terça feira 23, o ex-presidente Donald Trump, que já havia arrebanhado a maioria dos votos em Iowa, estado onde se deu a largada às primárias, se consolidou como franco favorito. Ele venceu o páreo com 54,6% dos votos, deixando para trás sua única oponente hoje, Nikki Haley, que ficou com 43,2% do bolo. Não é preciso ter um Ph.D. em ciências políticas para saber que, mesmo com uma diferença não tão grande assim entre os dois (esperava-se que chegasse a 20 pontos), as chances de Haley residem muito mais em fatores externos — Trump está enrolado na Justiça até o último fio do vasto topete e o desfecho é imprevisível — do que em seus atributos. “Estamos apenas começando”, bradou ela, após reconhecer a derrota, sabendo que os gélidos ventos desta temporada de frio nos Estados Unidos sopram a favor do adversário e que sua permanência numa disputa tão custosa pode se abreviar.
Apesar disso, Haley tornou-se uma presença incômoda para o histriônico ex-comandante do Salão Oval, ao demonstrar paciência e contar com doações para se manter sob holofotes que a vêm projetando e sedimentando seu nome nacionalmente. Se se mantiver firme até o duelo na Carolina do Sul, que governou por duas vezes, em 24 de fevereiro, Haley seguirá no papel que já se convencionou chamar de “pedra no sapato” de Trump. Ao mirá-la, ele deixa de disparar com a intensidade que gostaria contra o rival no lado democrata, o atual presidente Joe Biden, e vai torrando dinheiro de campanha. Já para Haley, o xadrez interessa — no mínimo, se estabelece como nova face daquela ala tradicional do partido que repudia os extremismos trumpistas e se cacifa para um futuro pleito.
Ex-embaixadora americana na Organização das Nações Unidas (ONU), cadeira que ocupou de 2017 a 2018, no governo do mesmo Trump, a quem agora ataca, ela diz que jamais se dobrou ao chefe e briga para se consolidar como uma opção mais sóbria e racional. “Aproximadamente 50% dos eleitores republicanos manifestam querer uma alternativa a Donald Trump e 75% preferem não ver uma queda de braço entre ele e Biden outra vez”, afirmou a VEJA, por nota, a gerente de campanha de Haley, Betsy Ankney.
Que ninguém confunda a postura anti-Trump da ex-governadora, a preferida dos velhos caciques republicanos e da turma de Wall Street (que abastece seu caixa de campanha), com um posicionamento ao centro no espectro ideológico. Nascida em Bamberg, na Carolina do Sul, Haley, que trabalhava como contadora em uma loja da família até chegar à política conquistando três mandatos consecutivos de deputada em seu estado, segue um receituário à direita, e não raro com fortes tintas. No terreno das políticas identitárias, a filha de imigrantes indianos — nascida Nimarata Randhawa, nome frequentemente evocado por Trump — costuma frisar que sua trajetória serve justamente como um contraponto ao discurso da esquerda de que vigora um “racismo sistêmico” na sociedade. Também tece duras críticas ao colchão social que o atual governo provê, prometendo enxugar gastos aí, e empunha com vigor a bandeira anti-imigração, já tendo inclusive apoiado a ideia da construção de um novo muro para frear o afluxo de estrangeiros — só que não ao sul, como fez Trump, mas nas bandas do Canadá.
Uma fagulha de esperança para Haley reside na hipótese de o oponente se afundar no cipoal de processos, ser condenado e perder eleitores. Atualmente, pesam contra ele 91 acusações entre ações cíveis e criminais, como a de ter tentado reverter por vias pouco republicanas o resultado nas primárias da Geórgia, em 2020, carregar para casa documentos secretos da Presidência, maquiar números da Trump Organization junto à Receita e fazer de tudo para conduzir o país a uma “insurreição”, incitando suas bases a invadir o Capitólio no infeliz 6 de janeiro de 2021. Esse episódio, aliás, já lhe custou a dor de cabeça de ter o nome por ora excluído da cédula nas primárias do Colorado, em março. Evidentemente que o ex-presidente está investindo fortunas em um time de advogados que usa de todas as brechas para empurrar os enroscos para depois das eleições, no que tem boas chances de sucesso. Fato é que o que poderia produzir um desgaste de alto alcance acaba se revertendo a favor de Trump, que insiste em ser vítima de uma “diabólica narrativa” e ameaça com “confusão e caos”, caso se torne inelegível. “Para qualquer candidato, esse punhado de processos seria péssima notícia, mas, para espanto de muitos, suas idas aos tribunais e a ideia de uma suposta caça às bruxas se tornaram uma positiva estratégia de campanha”, analisa Elaine Kamarck, do Brookings Institution.
Um argumento muito martelado por Haley é o de que, na disputa para valer, é ela que tem mais possibilidade de abater Joe Biden, segundo mostram recentes pesquisas. Os bons resultados colhidos na economia, entre eles a queda da inflação e uma elevada taxa de emprego, não estão se refletindo no nível de aprovação presidencial (estagnada em modestos 39%) nem tampouco nas aferições eleitorais, em que Biden perde para ambos os republicanos — o que também se aplicava ao governador Ron DeSantis, da Flórida, que abandonou o páreo em Iowa por falta de estofo financeiro e fôlego para vencer Trump, de quem tenta ser uma versão ainda mais radical. A explicação para Biden não capitalizar a maré favorável está na constatação de que a população ainda não sentiu a melhora no bolso. É muito cedo, porém, para cravar qualquer cenário. “Nunca podemos confundir a performance nas primárias com o sucesso eleitoral”, pondera Robert Reich, professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. A tirar pelo já visto até agora, certo é que esse será mais um daqueles embates movidos a pontapés e polarização.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877