Na guerra travada desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, há seis meses, a movimentação militar ucraniana vem sendo um cipoal de surpresas — uma das principais razões para o lado mais fraco ter resistido até agora, e até forçado recuos, no embate com um inimigo muitíssimo mais forte. Movidos pelo patriotismo e armados e treinados pelos Estados Unidos e demais aliados ocidentais, as forças do presidente Volodymyr Zelensky impuseram ao poderoso Vladimir Putin o constrangimento de ver aviões abatidos, um navio de guerra afundado e rotas de suprimento cortadas.
Foram tantos tanques destruídos que o governo, em comemoração do Dia da Independência (24 de agosto), transformou uma das principais avenidas de Kiev em museu a céu aberto de blindados capturados, visitado por famílias inteiras. Nas últimas semanas, em mais um gesto inesperado e audacioso, militantes infiltrados explodiram alvos militares na Crimeia, província ucraniana que Moscou invadiu e anexou em 2014 e que está fora do alcance do armamento usado na guerra. Depois de relutar inicialmente, Zelensky assumiu a autoria dos ataques e elevou o confronto a um novo patamar, ao declarar a intenção de retomar o território. “Tudo começou na Crimeia e vai acabar na Crimeia”, proclamou. Por enquanto, é mais desejo do que possibilidade, mas que abalou as estruturas do Kremlin, abalou. Explosivos detonados em três dias de agosto destruíram aviões e um depósito de munições e atingiram até o quartel-general da frota russa no Mar Negro, a mesma que mantém o bloqueio naval que paralisou as exportações ucranianas.
Mais do que conquistas militares, porém, as investidas na Crimeia são ações simbólicas repletas de significado. Tendo pertencido à Rússia por décadas, apesar de separada do gigante vizinho por um braço de mar, e com população majoritariamente russa, a Crimeia foi tomada da Ucrânia com relativa facilidade e voltou a ser um balneário chique frequentado pela elite de Moscou — um vídeo mostra parte dela, em trajes de banho, correndo para se abrigar durante uma das explosões. A Ucrânia ter driblado as linhas de defesa, entrado no território e levado a guerra para a porta dos resorts luxuosos é um golpe na empáfia de Putin, que cultiva internamente a balela de uma “operação militar especial” na Ucrânia onde os russos só levam vantagem. “Não podemos subestimar o impacto psicológico dos ataques à Crimeia”, diz Igor Lukes, professor de relações internacionais da Universidade de Boston. “A população local tomou consciência de que está no meio de uma zona de guerra.”
Outro baque na mesma toada foi o atentado que explodiu um SUV da Toyota na passagem por um dos subúrbios mais exclusivos de Moscou, matando Daria Dugina, 29 anos, apologista da extrema direita que vem a ser filha de Alexander Dugin, autoproclamado filósofo que prega a volta de uma Rússia imperial à frente de uma civilização “euroasiática” e é considerado uma espécie de influenciador de Putin. O serviço de inteligência russo, em excepcional demonstração de eficiência, desvendou o mistério em dois dias: uma ucraniana contratada por Kiev teria colocado a bomba e depois cruzado a fronteira da Eslovênia de carro. Zelensky negou qualquer participação. Putin lamentou o “crime vil e cruel” e prometeu vingança.
No campo de batalha, os dois lados sentem o efeito de seis meses de conflito sem ganhador definido. Putin reluta em tomar a impopular medida de convocar reservistas para compensar as baixas em suas forças — a CIA calcula em 10 000 a 20 000 soldados russos mortos até agora. Este seria um dos principais motivos para a pausa na ação militar que pretendia conquistar a região de Donbas e ampliar os 10% de território ucraniano que já estão em seu poder. A Ucrânia, por sua vez, conta agora com o poder de fogo dos HIMARS, lançadores de foguetes montados em caminhões cujos mísseis guiados por satélite podem atingir alvos com alta precisão a 80 quilômetros de distância. Mas também ela sente o baque das perdas de vidas (100 a 200 por dia) e continua a ter poder de fogo muito menor.
Com seus foguetes de longo alcance e atos de sabotagem, o comando ucraniano busca aproveitar o intervalo para reagrupamento das tropas russas e avançar na contraofensiva. “Chegamos a um ponto de inflexão na guerra e um momento crucial para a Ucrânia. Com os ataques à Crimeia, os russos passam a travar uma guerra em duas frentes”, diz Iuliia Osmolovska, diretora-executiva do Instituto de Segurança da Europa Oriental, em Kiev. Reforçar sua posição é requisito essencial para a Ucrânia continuar a receber armas e apoio dos Estados Unidos e, principalmente, da Europa, hoje atormentada pela perspectiva de um inverno sem aquecimento devido ao bloqueio do gás russo. Putin, por sua vez, pode preferir engolir as provocações e esperar os aliados abandonarem a Ucrânia, vencendo pelo cansaço. Uma invasão pensada para ser uma ação fulminante acabou se tornando um conflito que se arrasta sem solução à vista, à espera de ver quem pisca primeiro.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804