Há meio século, a Suprema Corte dos Estados Unidos deliberou, em um avanço histórico que reverberou por todo canto, que a Constituição americana garantisse às mulheres o direito de optar por interromper a gravidez. A progressista decisão perdurou até junho passado, quando a maioria conservadora dos juízes derrubou a célebre Roe vs. Wade, o processo que autorizou uma texana a abortar nos anos de 1970 (o bebê àquela altura já havia nascido), firmando uma base legal para todas as outras decisões. Os desdobramentos do recente recuo foram imediatos, com estados apertando o cerco ao procedimento, sem deixar às mulheres nenhuma instância à qual recorrer. Agora, em um novo capítulo desse enredo de retrocesso, são as pílulas abortivas que estão no centro de uma renhida batalha judicial, precipitada por uma turma que briga para banir mais essa alternativa para quem não quer seguir em frente com a gestação.
As chances de marcha a ré também aí são elevadas, dadas as circunstâncias em que a questão será avaliada. Por escolha da Aliança pela Defesa da Liberdade, entidade que representa grupos antiaborto, o caso repousa no colo de um distrito no ultraconservador Texas, chefiado por um juiz nomeado pelo ex-presidente Donald Trump. O que está posto à mesa é um alegado risco de um dos dois medicamentos abortivos mais usados: a mifepristona, que há duas décadas recebeu o aval do FDA, a agência reguladora americana, após comprovação científica de sua elevada segurança. Essa pílula, aliada à outra, o misoprostol, apresenta eficácia de 98%. Sem ela, cai para 76%. A temperatura da contenda subiu com a iminência do veredicto, que pode sair a qualquer hora.
A queda de braço judicial se estende para outras arenas. Procuradores do Partido Republicano ameaçaram levar aos tribunais os gigantes do varejo farmacêutico Walgreens e CVS, que estavam vendendo as pílulas por todo o país, incluindo estados (24 ao todo) onde leis freiam a trilha do aborto. Sob pressão, voltaram atrás, mantendo o acesso aos medicamentos apenas onde é permitido interromper a gravidez. Mesmo para aquelas mulheres de estados onde a abreviação da gravidez é vetada, porém, abrem-se brechas, como o envio das pílulas por países europeus via correio, com a ajuda de organizações como a Aid Access. O problema é que elas chegam em dez, vinte dias, às vezes excedendo o limite indicado de até três meses de gestação para ingeri-las.
A disputa texana traz o risco de impor mais obstáculos às mulheres em dimensão nacional. Se o juiz arbitrar ali a favor de tirar a mifepristona de circulação, outros estados tendem a se basear nessa jurisprudência para enveredar por caminho semelhante. Não se sabe em quanto tempo o medicamento, consumido por metade das mulheres que opta por encerrar a gravidez, desapareceria das prateleiras, uma vez que uma aprovação do FDA nunca é suspensa às pressas. De todo modo, o esperado é que o duelo siga para a Suprema Corte. “As disputas legais certamente continuarão a toda”, diz Sonia Suter, especialista em direitos reprodutivos na Universidade George Washington. Enquanto isso, não só as americanas, mas mulheres planeta afora, independentemente de matizes ideológicos e da escolha individual de cada uma, torcem para que mais um direito por elas conquistado não caia por terra.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833