Quando a Europa enfim anunciou que reabriria as portas, em junho, para a entrada de viajantes de outras partes do mundo, criou-se um alvoroço em torno de quem seria bem-vindo. No fim, prevaleceu a lógica: foram liberados quinze países com o contágio do novo coronavírus sob controle, definidos a partir de dados confiáveis. Sem surpresa, Brasil e Estados Unidos ficaram de fora. A América Latina, porém, teve um solitário representante na cobiçada lista — o Uruguai. No pequenino país de população reduzida e baixa densidade demográfica que já foi parte do Brasil, houve apenas 35 casos de Covid-19 por 100 000 habitantes (o Brasil tem trinta vezes mais casos), e um total de 35 mortos. Não é essa a única conquista do vizinho ao sul. Sem alarde, o Uruguai acumula alta pontuação em uma série de indicadores positivos, a começar pela classificação entre as quinze “democracias completas” do mundo, em lista elaborada pela revista The Economist com base em critérios como pluralismo político, gestão do governo e liberdades civis.
No auge da pandemia, o Uruguai, como todo mundo, fechou fronteiras, suspendeu aulas, proibiu serviços religiosos e cancelou grandes eventos, mas não chegou a adotar quarentena obrigatória. O presidente Luis Lacalle Pou, de centro-direita, empossado em 1º de março, já com a crise na porta, anunciou que não iria “limitar a liberdade” dos 3,5 milhões de uruguaios, recomendando, no entanto, que adotassem as necessárias medidas de higienização e distanciamento social. Evidentemente, o fato de ser um pequeno país ajudou, mas não é a única explicação para o sucesso da empreitada. “Com uma comunicação eficaz, o governo optou por prevenir, em vez de proibir. Confiou na atitude responsável da população”, diz Griselda Bittar, especialista em medicina preventiva da Universidade da República, em Montevidéu. Deu certo: em maio, mais de 90% dos uruguaios estavam fechados em casa — no Brasil, o auge do confinamento, no dia 22 de março, foi de 62%.
País estável politicamente, sem os picos de polaridade que sacodem a vizinhança, a passagem de poder de quinze anos de governo da Frente Ampla, de esquerda, para o conservador Lacalle ocorreu de forma organizada, sem traumas e sem risco de o novo governo apagar o que o anterior pôs em andamento e começar tudo de novo, como é regra na América Latina. Ao lado da promessa de aumentar a segurança e reduzir a presença do Estado na economia, tudo indica que serão mantidas as políticas progressistas da administração anterior, que fez do Uruguai o primeiro do mundo a legalizar a venda de maconha.
Tirando os doze anos de ditadura militar, a partir de 1973, os avanços uruguaios nas últimas décadas são excepcionais. É dele a melhor posição latino-americana — 21º no mundo — no Índice de Percepção da Corrupção da ONG Transparência Internacional (o Brasil ocupa o triste 106º lugar) e também nos indicadores regionais de paz e de liberdade de imprensa. Com uma economia que não deixou de crescer até 2019, enquanto as nações em volta andavam para trás, a pobreza não passa de 3% da população, a classe média representa mais de 60% e está lá a melhor distribuição de renda da América do Sul. “Seu ciclo econômico é menos volátil do que o de Brasil e Argentina, devido a uma gestão fiscal mais ordenada”, explica Pedro Isern, diretor executivo do Centro para Estudo das Sociedades Abertas. O prêmio da eficiência vem agora: todos os voos entre Montevidéu e Madri programados para o mês de julho foram vendidos em poucos dias. Nada como estar na lista certa.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698